quarta-feira, 2 de setembro de 2009

XXII pois é, não é mesmo?

a vida ronda



Teve um ano aqui na cidade, se não me engano em 68, quando mataram àquele comunista do Calabouço, que nós tivemos aqui, no mínimo, cinco mortes por mês. Cada um morria de uma coisa. Mas uma dama dessa espécie é a primeira vez que vejo morrer de tiro. E começou assim. No primeiro dia de janeiro àquele um teve um infarto e morreu. Inaugurou o ano igual ao Antunes. E todo mundo foi morrendo de carreirinha. Gente que ainda era para estar viva. Era velho, novo, criança. Que ano! Esse também promete. Ainda mais fim de milênio. Jesus disse: “ a mil chegarás. De dois mil não passarás.”
Nisso chegou a polícia, que tem um carro velho com a sirene tocando sempre, não pára. Dizem que não tem conserto, até ponta pé ela levou e continua sirenando. É ligar o carro e ela começa a tocar. E uma lambreta que é dirigida pelo mesmo indivíduo sempre, o cabo Giordano, uma íngua, como dizem.
-Quem matou, perguntou o Gauchão, delegado local.
-Quem vai saber, respondeu zangado Carlinhos.
Foi Gauchão quem ficou com seu cargo de delegado.
-Nós vamos saber já, já. Dêm uma batida por aí. gritou para os soldados. Prendam todos os suspeitos.
-Ara, Gauchão. Vá com calma! Suspeitos de quê? Isso é arbitrariedade sua!
-O Delegado agora sou eu Carlinhos. Mando prender quem eu quero. Os caras de sempre, pôrra! Os suspeitos ! E se duvidar prendo você também!
Carlinhos avermelhou dos pés à cabeça. Ia revidar quando Zazá chegou e o empurrou para casa. Vambora Carlos, Vambora! Gritava e puxava o marido pelos braços.
Carlinhos foi.
- Vou querer o teu depoimento, viu Carlinhos? e o teu também, você aí, gritou em minha direção.
-Vai de fuder ,gritava Carlinhos com a voz rouca.
-Vai te meter com tuas negas! veio Mariângela em socorro.
Zazá botou todo mundo pra dentro de casa e passou ferrolho na porta. Vocês sosseguem! Vocês sosseguem. Daqui a pouco ele prende vocês por assassinato. Bico calado todo mundo. E você, seu Antonio, é melhor ir pra casa. Num caso desses a gente se finge de morto. E toma um calmante para acalmar os nervos. Toma logo que chegar!
-Deixa a polícia ir embora, dona Zazá. Senão eles vão querer me parar!
-Meu Deus, mais um coitado pra proteger. Deus que me acuda. Quem não deve não teme seu Antonio.
E Zazá foi pra cozinha fazer chá para os nervos da gente que estavam em pandarecos.
No final da tarde do dia seguinte Carlinhos veio me contar que Renida morreu com dois tiros na cabeça. Daí tanto sangue. E que a polícia não tinha nenhuma pista.
-Mas eu sei o que foi.
-Sabe nada, Carlinhos. Sabe como?
-Renida, pode escrever, veio atrás do tesouro. Deve de ter descoberto uma pista importante e mataram ela. Pode escrever!
Fiquei com a pulga atrás da orelha. Como diz o Carlinhos. Olhei a casa da Renida no tope do morro, a mais alta do lugar. Mesmo sendo a mais alta o sol se põe primeiro na casa dela. Fica naquele pedaço uma margem angular de sombra. O verde da grama é muiro escuro. O branco da casa agride de claridade a paisagem que, nesta hora, pede recolhimento. Renida estava, como sempre, na balaustrada da varanda, olhando o vale. Com os braços apoiados nas réguas de madeira. O tailleur azul-marinho, que a fazia mais magra do que estava realmente. Olhando as coisas do vale. Só. Absolutamente só. Com sua televisão e as revistas de palavras cruzadas.
Desde que mudou para a casa nova, em começo de novembro do ano passado, que só come biscoito. Come biscoito e fuma cigarros. Um atrás do outro. Emagreceu. E muito. E não adianta levar comida para ela. Não aceita.
Eu sabia que estava vendo minha imaginação ver Renida na varanda olhando o vale. Que imaginação se acostuma também com realidade. E para se desacostumar leva tempo. Renida ainda ia ficar na varanda por muito tempo!
No dia seguinte, eu ainda estava com medo de sair de casa, Carlinhos foi prestar depoimento na delegacia e. na volta, passou por aqui. Meu médico havia atestado que eu estava em estado de choque e que não poderia ser ouvido nos próximos dias, até melhorar.
-Que Renida morreu que nada, veio dizendo Carlinhos. Vaso ruim não quebra!
-Mas se nós vimos ela morta! botando sangue pela cabeça!
-Não morreu! Está tão viva quanto eu e você. O Gauchão me contou. Levaram ela para autópsia, e na mesa começou a se mexer. Ficou de pé e discutiu. Queria saber onde estava, o que faziam com ela. Essas coisas da Renida... As balas fizeram só sangue. Mais nada. E desmaiaram ela. Entraram por um lado, saíram por outro, disse o Gauchão. Sem atingir qualquer ponto vital. Resultado, lavaram Renida para o pronto socorro e ela está lá tomando soro. Zazá está pau da vida. Diz que se ela era difícil antes do tiro, agora então vai ficar impossível!

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