terça-feira, 21 de abril de 2009

pois é, não é mesmo, XXI



a ronda da morte




Aqui nesta cidade é mesmo assim, explicou Carlinhos. O um fica devendo no banco, vende tudo o que tem dizendo que é para pagar, abre outra conta bancária em outra cidade, em nome dos filhos, e vai juntando dinheiro. Um empresta daqui, outro dali, mas a dívida dele não diminói. Só aumenta. Os agiotas começam a ficar impacientes. Mas ainda lhe fornecem mercadoria. Tô te contando a história de um açougueiro que fez isso! É só um exemplo, mas a maioria faz como ele. Só em banco devia pra mais de duzentos mil reais! Penhorou tudo o que tinha. E mesmo penhorado foi vendendo. Vendeu a casa, o açougue , o sítio e, mesmo com o açougue vendido, não entregava, continuava com as carnes lá, atendia ao povo. Até que um dia estourou tudo. Processo daqui, processo dali. O promotor chamou. Ele já tinha pedido concordata. Tô falido, quebrado, respondeu pro promotor que era amigo dele. Só tenho o dia e a noite!
O promotor não pode fazer nada. O homem tá duro! Não tem um tostão. Nem propriedade, nem nada.
Aí o açougueiro sumiu. Foi embora da cidade, se dizendo envergonhado. Desapareceu por anos a fio. Muito tempo depois dei de cara com ele. Carro do ano, nos trinques, mansão na praia, sítio nas montanhas, um vidão!
-Fiquei te devendo um dinheiro rapaz, ele coça a cabeça quando me encontra. Mas sabe como é, o real, ninguém compra mais nada. Tudo muito difícil! E agora, como é que a gente faz?
Aí encabulei. E eu disse. Não tenho vergonha de dizer não! Vergonha eu tive na hora em que ele falou isso. Eu disse ara! deixa isso pra lá! pra que serve um amigo se nessas horas não ajuda?
Tomamos uma pinga. Nos demos um abraço, um aperto de mão, recomendações às famílias e fomos embora.
Na estrada, de volta pra casa, meu rosto tava ardendo de vergonha. Vergonha de mim e dele! De mim que ainda tomei pinga com o safado. Dele, dele, ara, sei lá porque. Porque ele mesmo tava feliz da vida!
E é isso que vai contecer com o Pedrinho. Deve pra mais de duzentos no Banco Real, outros duzentos no Bemge. Está com tudo penhorado. Vendeu a fazenda penhorada por cento e cinqüenta. O comprador tá doido pra regularizar a compra e não consegue. Vendeu a casa onde mora, que tá penhorada também, por cento e oitenta mil ,pro irmão e tá pagando um aluguel de seiscentos reais, para esse mesmo um. A loja onde vende carro tá penhorada e ficou fechada pra mais de ano por causa do imposto de renda. Ganha um dinheirão com os loteamentos que tem e não paga nada.
Num domingo a gente foi pro botequim e ficou bebendo. Aí falou: já tou cheio desta cidade. Um dia destes compro uma mansão em Ubatuba, um Cheroquee, e vou pra lá. Fiquei com a pulga atrás da orelha. Ara, se ele ainda tá apertado é porque tá pagando juros disso tudo, ou não paga nada e guarda o dinheiro.
Eu acho que ele vai fazer o mesmo que o açougueiro fez. Na hora em que as coisas ficarem pretas ele se manda! Vai pruma mansão em Ubatuba, na beira da praia.
Pedrinho era quitandeiro. Quitandeiro dos bons. Os irmãos dele, todos, vivem disto. Um tem dois sacolões. Mas só fala de milhão pra cima. Ficou com mania de grandeza! Agora é assim.
Noutro dia ele veio no escritório aqui do matadouro saber se eu tinha um tempinho. Falei que pros amigos tinha todo o tempo do mundo. É o seguinte Carlinhos, ele falou, aqui tem muito trabalho de terraplanagem. E na cidade ninguém mexe com isso. Então eu recebi o dinheiro da fazenda e pensei: vou à Juiz de Fora comprar um trator de esteira, uma retro-escavadeira e uma patrol. Quero saber se você pode ir comigo.
Claro que posso Pedrinho, eu falei, É pra hoje, é pra amanhã? Me avisa só com um tempinho de antecedência que eu vou. Falou que ia avisar e saiu.
Aí fui tomar um cafezinho no botequim e encontrei o Marcelo, filho dele. Contei a história, todo feliz pelo Pedrinho, que era negócio certo. Aí levei um susto. O Marcelo me avisou que era loucura do pai. Que ele não tinha dinheiro nem pra comprar uma galinha. Nem pra comprar uma galinha!
Tem uma senhora que comprou um terreno dele. Encontra a gente e mete o malho nos mineiros. Só fala mal. Mas vem todos os anos passar o verão aqui. Aí diz que tudo que tem de ruim no Brasil começou em Diamantina, com o Juscelino Kubistcheque. Que na mania de grandeza dele, que é coisa de mineiro, cismou de construir Brasília e endividou todo o povo no FMI. Vendeu o Brasil inteiro pros americanos. E coisas assim. Ara, se ela acha que a gente é tão ruim assim, o que vem fazer aqui? Põe o Pedrinho na justiça, ara!
Pior é o Fernando Henrique, que é carioca, e mandou pro Congresso uma lei privatizando todas as florestas do Brasil. Inclusive a amazônica! E o Congresso vai engolir tudo numa boa, como sempre. E não tem mineiro indo pro Rio falar mal de carioca não!
Que adianta? Eles fazem o que querem!
E ainda fica o Lima, que saiu lá de Pernambuco,de Catende, onde morria de fome, pra fazer artesanato aqui, dizendo que Minas gerais é terra de reencarnação de judeu. Que mineiro é todo mundo judeu! Ara! que veio fazer aqui. Volta pra Pernambuco. Ou fica aqui sem xingar a gente uai!
Você quer saber mesmo de quem é a culpa? É da televisão! É do Roberto Marinho, principalmente. Do Silvio Santos nem tanto! ele é mais humilde. Mas lá na tevê do Roberto Marinho tudo é grandioso. O rico é muito rico. não existe pobre no país. Quando existe, o pobre é bandido. É o assassino!
Todo mundo quer uma vida daquela. Ser povo de novela. Todo fazendeiro é rico, tem jatinho! Fazendeiro pobre, que é a maiorira, não existe. O resto do pessoal é peão burro e sem terra. No final da novela os sem terra ganham fazendas e vão ser fazendeiros ricos. Ninguém fala em dificuldade . Em chuva demais e seca que atrapalha a colheita. É tudo fácil, abundantes. Pegam cada mulheraça que só vendo! Viajam o mundo inteiro pra comprar cada gadão! Eu heim, ara! quem não quer ser assim?
Foi isso que virou a cabeça do Pedrinho! Nada mais nada menos do que a televisão.

E foi justo nessa hora que Renida desceu a ladeira da casa lá dela. Naquele passo meio desesperado, abanando a mão em chamamento. Cheguei a ouvir meu nome ser pronunciado por duas vezes. Antonio! Antonio! Depois dois estampidos. Olhamos para o céu eu e Carlinhos para ver de onde estavam soltando os fogos. O sinal de que a droga tinha chegado. E voltamos a olhar, juntos , sincronizados, havia um ôco total na natureza, nenhum pio, e nossos olhos se encontraram tanto ao olhar para cima, para o céu, como ao olhar para a casa da Renida. E a vimos. Estirada na estrada, no meio de uma poça sangue, que como se fosse nascente, mina, escorria pelo barro vermelho da estrada. Estacamos em estupor. Não dava para acreditar!
Julio chegou correndo, vindo dos lados do matadouro e tentou levantar Renida do chão. Foi quando Carlinhos lembrou de seu tempo de delegado.
Solta ela! solta ela! cê tá doido? Vão encontrar suas digitais nela! E se mexer no corpo atrapalha o trabalho da polícia. E enquanto acocorava ao lado do corpo, tirava um espelhinho do bolso. Encostou no nariz da Renida e nada. O espelho não embaçou.
-Tá morta, confirmou.
-Mas por que você carrega este espelho no bolso, perguntei?
-Hábito de delegado, disse com autoridade, manda a Zaza chamar a polícia. E tirou a camisa que colocou sobre o rosto da morta.
-Segunda morte neste início de ano, resmungou. Em quinze dias duas mortes no mesmo mês. Vamos mal. muito mal. Isso é sinal de mau agouro. A morte ronda a gente...

segunda-feira, 13 de abril de 2009

pois é, não é mesmo? XX


segredo para recolher a baba do boi




Ontem de manhã Zazá me convidou a ajudá-la numa simpatia para o Carlinhos não beber mais.
Fomos na fazenda ao lado pegar a baba de um touro preto.
Como o touro não se resolvia a babar começamos a provocar sua salivação com uma cenoura.

O segredo consiste em botar a cenoura perto da boca do touro e tirar, deixar ele dar uma lambida e tirar a cenoura. O desejo por ela faz o touro salivar. A baba escorre e fica fácil, com um pote de boca larga, recolhê-la.
Depois é só misturar essa baba na pinga que a pessoa bebe. Será, certamente, o último gole do bebedor. Nunca mais ele porá álcool na boca sem vomitar as tripas.

Mas antes de falar sobre o Carlinhos, deixe que me apresente. Afinal, estamos juntos há várias palavras e vocês não sabem quem eu sou. Meu nome é Antonio. Sou um rapaz jovem, alto, atlético, bonito, mas com um pequeno defeito para alguns: tenho um olho azul e outro verde. Diz o Carlinhos que sou a reencarnação do tropeiro Simão. Porque, conta a lenda, que ele tinha os olhos assim, antes que o Antonio Ramon os furasse. Mas eu não acredito nessas coisas.

Vim para esta cidade do interior me curar da doença da civilização. Explico: fiquei com medo das grandes cidades. Saía para trabalhar com a certeza de não voltar para casa, pois algum assaltante me mataria, ou uma bala perdida viria se encontrar no meu corpo. Adoeci de medo. A chamada doença do pânico. Me encostei pelo INSS e saí pelo interior. Até que parei por aqui. Meu padrinho, que é influente, conseguiu me aposentar. E cá estou. A cada dia mais tranqüilo e seguro. Tanto, que para ativar minha vida, resolvi contar em livro estas histórias que escuto aqui, procuro inclusive reproduzir a maneira de falar que não é só deste povo. Precisa até ser dicionarizada!. Quem sabe algum editor publica. E o povo gosta e compra os livros. Quem sabe?
Lá na cidade parei também de fazer sexo. Tinha medo de pegar aids. Mas um medo tão grande, que não conseguia acreditar que uma camisinha, coisa tão simples, fosse me proteger da doença. Nos momentos mais aflitos, em que não tinha jeito, ia para o banheiro e me masturbava. Depois isso não foi mais preciso. Com a idade e a doença esqueci o sexo. Acho que na minha idade é assim! Entrei numa academia e fui malhar. Queimava lá todos os desejos!
Aqui, no interior, esta parte da minha vida já começa a ser resolvida. Encontrei uma moça de boa família, que com o tempo foi empobrecendo, como todos as famílias daqui. Eles têm muitas terras mas dinheiro que é bom, nada. Ela é fogosa, gosta de uns amassos. Estamos ficando. A Rô tem um jeito de beijar na boca que até parece coisa de cinema! Vive molhada! Ponho os dedos lá e chega a escorrer pela minha mão! É mulher e tanto, a Rô.

O Pedrinho, vou falar sobre ele agora, começou a vida alugando cavalo na praça. A família dele era muito pobre. São nove filhos ao todo. O pai, acostumado a lidar na roça, veio trabalhar para um político da cidade, que era o mesmo patrão na fazenda.
Alguns dos filhos, na cidade, foram até a segunda série primária. Mas depois, pela necessidade de trabalhar, largaram os estudos.
O pai conseguiu comprar um cavalinho que as crianças levavam para a praça nos finais de semana, e alugavam para turistas.
Dizem também, não sei se é verdade, que às vezes ficavam também com a carteira de um ou outro turista, principalmente se fosse gringo!
E assim, é o que dizem, foram comprando mais cavalos e até uma charrete. Pedrinho tomava conta da charrete.
Daí, uns anos depois, apareceu com um caminhão zerado pra fazer frete. Comprava plantas e legumes na roça para vender na cidade. Na roça pagava uma tutaméia. Na cidade, metia a mão. O irmão dele ainda é hoje dono do único sacolão da cidade. O outro irmão tem um depósito de frutas e legumes, onde chegam caminhões vindos de todo o sul de Minas. Ele fornece para todas as quitandas e mercados pequenos.
O tal caminhão, dizem que o Pedrinho levou para o Paraná, deu sumiço nele, voltou para a cidade e disse à Companhia de Seguros que tinha sido roubado. Falamn que ele vendeu o caminhão no Paraná, para uma turma que vendia no Paraguai.
A companhia pagou o seguro, e com todo o dinheiro ele montou uma loja de carros usados e começou a ganhar muito dinheiro. Comprou até a loja, que fica na entrada da cidade e as terras em volta dela!
Além do mais comprou a casa dele, na Rua Comendador Ramon, com dois andares. No de baixo fez lojas, que aluga para o comércio .
Depois comprou uma fazenda que acabou vendendo para uns paulistas, na época em que tinha uma dívida com o Banco Real. Não vendeu a fazenda toda. Só a sede e algumas terras. Ficou com o cafezal e muitos alqueires de pasto. Num pedaço fez este condomínio onde estou morando, que dá para a parte rica da cidade. Num outro pedaço, que dá para a parte pobre, para os lados do asilo, fez um loteamento para o pessoal de baixa renda.
Ele tem um monza zero, dois fiats, uma cara redonda com olhos espremidos, olhando sempre com desconfiança. E por mais que cuide falar certo, fala errado, abusando da falta de concordância e reinventando a língua. A roupa dele é calça jeans, bem vincada, e camisa polo. Sapato mocassin. Usa cinto de couro e tem um rolex verdadeiro no pulso.
É difícil dizer se ele é baixo mesmo ou engordou demais e, por isto,, parece mais baixo do que é. Tem um sinal grande, como uma verruga, no lado direito do lábio superior. Quando fica nervoso, o sinal treme. Na hora de cumprimentar as pessoas ele estica o braço duro, mas a mão fica mole dentro da mão de quem ele cumprimenta. Idade indefinida. O rosto é mais velho do que o corpo. Marcas da miséria.
Se ele prometer que vai fazer alguma coisa, pode esquecer, porque não vai.. Meus amigos, dele diriam assim: Pô ! cara sinistro!
Não olha ninguém de frente. Quando se captura o olhar dele, no fundo do olho apertadinho, há muita raiva e desconfiança.
Ele me olhou assim quando comprei o terreno, e cumprimentou com a mão mole, depois que dei o sinal. Sinistro ele, muito sinistro!

Diz Miranda que ele tem parte com o diabo.
No condomínio ele separou dez lotes para ele. Tem quase um alqueire mineiro. Cercou tudo com régua de eucalipto. No fundo fez um lago artificial. Caiou de branco as réguas da cerca e os pés das árvores. Soltou lá um cavalo manga-larga inteiro que vive correndo atrás da égua da Mariângela. Um cavalo lindo, calçado, marrom, ou baio, como eles dizem, macho paca! Ou Pedrinho se escanhoa muito bem ou é glabro.

Já Carlinhos é diferente. Veio de uma família abastada, tradicional na cidade. no estado e na história. Herdeiros de Fernão Dias Paes Leme, o caçador de esmeraldas.
Até hoje ele tem pendurado no pescoço, não tira nem para tomar banho, o medalhão de prata portuguêsa que o bandeirante usava. Com o passar do tempo o material, a prata do medalhão, está fininha, quase quebrando. Não se consegue ler a inscrição em latim, que o rodeia. Algumas letras desapareceram. Carlinhos já mandou fazer a quinta argola presa ao medalhão. Quatro delas já quebraram.

A mãe de Carlinhos teve quatro filhos; dois homens e duas mulheres. Todos estudaram. Mas a filha mais preparada, a que era professora de faculdade morreu de repente, com câncer na cabeça, lá nela, e quando foi ver, já era o fim. Não deu pra fazer nada!
Carlinhos é um homem alto, aloirado, os pelos da barba cerrada são louros, misturados com fios brancos. Magro. Dos dentes da boca, só sobrou um punhado em baixo. Na arcada superior há um canino sofrido, comprido e esverdeado. Mas é um homem bonito! Quando bebe fica mais terno que o normal e derrama toda sua carência no colo do interlocutor.
É um homem do passado. Com muita delicadeza, afasta a cadeira da mesa para a mulher sentar. A dos outos que a dele,a Zazá, não cuida.
Ele combina as coisas com Pedrinho, a quem chama de amigo e fica esperando, pelo resto da vida, que o outro cumpra sua parte. Por mais que Zazá o atormente para agir a vida e deixar Pedrinho para lá, ele diz que deu a palavra de homem, e palavra dele não volta atrás!
A família do Carlinhos, antigos ricos, como diz o ditado: “avô rico, filhos remediados, netos pobres.” empobreceu. As terras, mal cuidadas, foram divididas várias vezes entre os herdeiros, ficando cada vez menores. Os herdeiros não tinham dom para trabalhar a terra, como diziam, e não sabiam fazer mais nada. Os encargos trabalhistas com empregados ficavam cada vez mais altos e, por isso, o número de trabalhadores diminuía. Então era menor a produção, menos dinheiro ganhavam menos dava para pagar, mais endividados ficavam e as terras, a cada ano, estavam mais abandonadas ao capoeiral.
Os empréstimos no Banco do Brasil levavam qualquer produção que houvesse ,além de nacos da terra para pagar as dívidas. A venda dos produtos não compensava os gastos. Quando não era a geada, a seca, ou o excesso de chuva acabava com a plantação.
Até que o pai resolveu transformar tudo em pasto para o gado. Depois morreu!
Quando o pai do Carlinhos morreu, a terra foi mais dividida, entre os filhos e a mulher viúva.
E tudo acabou no que está hoje. Carlinhos loteando alguma coisa para fazer dinheiro, dinheiro que nunca chega, porque na aflição ele acaba vendendo por uma tutaméia.
Construiu perto da pedreira o matadouro municipal, onde trabalha de segunda à sexta-feira. O matadouro tem o título de municipal, mas a matança é clandestina, de gado doente, vaca prenhe, pronta para parir, mas que tem mamite, ou alguma outra inflamação, uma tragédia, sei lá. No sábado e no domingo bebe. Como Carlinhos bebe! entorna garrafas e garrafas de pinga e nada de fazer efeito mais. Durante as noites da semana ele bebe também. Mas vinho. Garrafões inteiros, cada noite, de Sangue de Boi.
A pedreira está desativada e, de vez em quando, rola lá de cima uma barreira. Aí Zazá manda o Julio, com uma enxada, limpar a estrada que é toda deles. Só quando o rio da glória enche demais é que não tem jeito. É esperar que as águas baixem para usar a estrada de novo.
Eu sempre pego a estrada do matadouro quando vou para Baependi, ou quando a estrada de cima está enlameada demais.
As carcaças estão sempre lá. Penduradas pelos ganchos nos tubos de metal. Novas carcaças, outras carcaças. Às vezes, paro o carro e as fico vendo vermelhas, os ossos das costelas definidos, a escorrer sua trilha de sangue. E se fossemos nós, penso, gente dependurada? E se fosse futuro e não houvesse mais alimento no planeta e as boiadas de seres humanos estivessem aguardando no curral para serem esquartejadas? É certo que viriam das regiões mais pobres do Brasil. Teriam a carne dura, crestada pela fadiga, ou viriam da África, e de outros países do terceiro e do quarto mundo. Mas não para o matadouro municipal do Carlinhos. Acredito que a carne daqui viria do sertão do norte e nordeste do Brasil e talvez de Pirapora, onde compram o gado bem barato, Teófilo Otoni, Pedras Azuis, sei lá! Será que todos comeríamos desta carne? E se não mais houvessem verduras, nem raízes. O que seria dos vegetarianos e macrobióticos?
Aí me lembro que o futuro é agora. Que não existe alimento para todas as pessoas do planeta. Que a maioria morre de fome e vive se esvaindo de pura inanição. Que a morte por desnutrição é hábito de cada segundo. E com desperdício. As carcaças das crianças mortas ou dos adultos não são aproveitadas para saciar a fome dos que ficam se esvaindo de pura inanição. Por falta de recursos para o enterro algumas são enterradas no fundo dos quintais, onde os predadores se aproveitam dos dejetos, abandonadas aos vermes e aos urubús.
Aí tenho uma recaída do meu medo. Volto para trás, como eles dizem aqui e fico trancado dentro de casa por dias e dias, dias e dias. Até que a emoção esquece, eu esqueço, mas antes juro que nunca mais passarei pelo matadouro. E esqueço também. O fascínio me leva a parar lá de novo e ficar olhando as carcaças escorrendo sangue, recém abatidas.

-Vou te contar uma coisa, me disse Carlinhos. É vérico, como falava meu pai. Durante muitos anos procurei por uma Maria, de l7 anos e virgem. Não dei sorte. O tesouro não era para ser meu. Quando a vontade foi fraquejando, quando a saudade da casa de minha mãe se tornou quase que uma doença, voltei. Vi que já estava na hora de casar. Ter mulher, uma casa e filhos. Meu pai, coitado, já era muito idoso. Aí, com o prestígio dele consegui o cargo de delegado municipal para mim. Naquele tempo podia! Não precisava ser advogado nem ter muito estudo. Fiquei mais de vinte anos no cargo. Quando a lei mudou e tive de sair da polícia, montei o matadouro. E aqui estou. Aqui estamos. Sua doença trouxe você pra cá e ficamos amigos. Você reencarnando o tropeiro Simão. E eu não sei reencarnando quem. Só nos falta agora uma Maria e vontade de cavar o tesouro. Se a gente achar vou comprar uma Cheroquee.
-Não tenho gana de ouro não Carlinhos. Tenho o que quero. Não mais.
-Cada cabeça cada sentença, já dizia meu pai. Eu ainda quero o ouro. Só perdi a gana de cavar! Coragem pra matar eu tenho. Tô no fim da vida. Mal consigo sobreviver com esse governo tomando tudo o que a gente constrói. Eu quero, quero sim, o ouro.

domingo, 5 de abril de 2009

poisé, não é mesmo, XIX


a origem dos macieira juncal



De frente para o Supermercado Inca, no centro mesmo da cidade, fica o Hotel Corumba, que tem o mesmo nome da cidade, na rua Comendador Ramon. Esse hotel, de primeiro, foi a casa que o Antonio Ramon mandou construir para ele e a nova mulher, inaugurando os tempos de riqueza. Mandou trazer de Portugal todo o acabamento da casa. Os azulejos portugueses, dos quais ainda restam alguns na fachada do hotel, as sedas de cama, os linhos da mesa, as porcelanas inglesas também foram primeiro à Portugal, antes de aportar no Brasil.

Para receber toda a carga que importara, Antonio Ramon, que estava para ser feito Comendador, com a comenda comprada ao Rei do Brazil, preparou dois homens de sua inteira confiança. Mulatos os dois, já produtos da miscigenação. Altos, com as pernas muito compridas e finas, quase que as mulas passavam por debaixo deles.
De um, mandou tirar os dois olhos para que ficassem mais apuradas a audição e a fala. Do outro, cortou a língua e furou os tímpanos, para que a visão tivesse mais acuidade  e, contar como os acontecidos?
Um descansava de dia, durante as longas viagens entre as Minas Gerais e o Porto de Estrela, no Rio, para pegar as encomendas, e levá-las intactas a seu dono. Dormia, encurvado sobre a mula, que embalava seu corpo. Era o cego quem dormia assim, Para atilar nas noites em claro, em que era só ouvidos.
O que enxergava ia comboiava a tropa pelos caminhos. Sem fazer muito barulho, evitava lugares difíceis de passar, porque como o patrão disse o cego era mais importante, ele tava com o ouvido tão treinado que podia ouvir qualquer um que chegasse de maldade para roubar a tropa.

Como a casa era uma enormidade, um luxo!, para mais de sessenta quartos, oito cozinhas, vinte e duas salas e, de metro em metro, havia uma porta ou janela para abrir, Antonio Ramon contratou um empregado. Este já veio manco de nascença. para fazer uma só coisa: abrir e fechar  as janelas da casa, todos os dias, fizesse chuva ou sol.

O manco começava de manhã bem cedo o seu serviço. Antes das cinco. Quando havia lua, e ela estava bem alta no céu, ele terminava de fechar a última janela.
As janelas do quarto de sua mulher eram abertas ou não, segundo seu desejo, por uma das dez criadas que a serviam. As dele, do seu quarto, o patrão fazia questão de abrir ele mesmo. Escancarava das janelas a rua de terra batida, vermelha do barro bom de plantar café; metade do ano trazia poeira, na outra metade, lama.

Aos poucos Antonio Ramon e sua nova mulher, de quem ninguém lembra o nome,  povoaram a casa. E, juntamente com a casa , a cidade, de dezenas de Ramons, legítimos e bastardos,  sem conseguir gostar de nenhum deles com o mesmo amor que sentira por sua filha Maria que, agora, guardava sua fortuna.

Nesta época não existia o Supermercado Inca. Para abastecer a dispensa os Ramons tinham suas terrras de plantação e criação. Mas as iguarias mandavam trazer da Europa. Era um ir e vir que não parava nunca. Os bons chás, ervas de cheiro apetitoso, caixas de bacalhau, chocolates, licores e perfumes, bolos e biscoitos, e bebidas, muitas bebidas. Fumo para cachimbo. Charutos . E uma raiva profunda quando piratas abocanhavam a carga, impedindo que esta chegasse.Ainda bem que Antonio Ramon preferia a bagaceira da terra, feita em suas fazendas, que lhe ardia dos gorgomilos aos bagos, quando a tomava de um trago só.

Os mulatos tropeiros de Ramon, um cego e outro mudo e surdo, salvaram por várias vezes, de negros assaltantes, negros fugidos, os tesouros que seu amo mandava vir de Portugal.

O cego chamava-se Simão e o surdo-mudo ficou com o apelido de Quém-quém. Porque, ninguém nunca contou. Dizem que foi sempre assim.
Acontece que Simão e Quém-quém, de tantas idas e vindas ao Rio de Janeiro, tornaram-se conhecidos e gabados por sua honestidade e fidelidade ao amo.

Um dia, chovia como se fosse acontecer a enchente das goiabas. Um jovem bem posto, acompanhado por um séquito de serviçais, montado num cavalo de dar inveja de bonito e tão bem ornamentado, abria ala para uma carruagem bem acolchoada onde estava uma senhora, que por semelhança parecia sua mãe, e algumas mucamas. Ele, homem desabrido, aproximou-se daquele casarão e olhou. Olhou muito, avaliou. Em seguida rumou para a melhor hospedaria da cidade, onde acomodou a senhora e providenciou pouso para a criadagem e os animais da tropa. Era o conde de Macieira e Juncado, o jovem rapaz, que viera trazer ares metropolitanos à pequena cidade do interior! Corumba modernizava-se!

Ao saber da estada do nobre na cidade, Antonio que não gostara inicialmente da chegada dos intrusos, mandou sua mulher ataviar as filhas mais velhas, Mariela, Maristela, Marivalda e Marilda. Ordenou  um baile de gala para homenagear os visitantes.
E foi neste baile que Marilda encontrou seu esposo, com quem deu início à linhagem dos Ramon Macieiera Juncal.
Ao casar com o conde Reinaldo, Marilda formou a família mais fecunda de todo o Brasil e do sul de Minas Gerais. Em cada cartório, banca de advogado, escritório de engenharia, em cada comércio bem sucedido, no ramo imobiliário, enfim, em todas as atividades existentes há um Macieira aaJuncal. Criaram e fundaram várias cidades famosas. Se espalharam por São Paulo e Rio de Janeiro.
E desta última cidade, alguns séculos mais tarde, retornou para morar em Corumba, a Renida, que comprou o lote do Carlinhos.
Ela recebeu este nome em homenagem aos antepassados distantes, Reinaldo e Marilda.
Renida, a neta solitária, que perambula hoje pela cidade, desprezando os mineiros, e botando contra cada um que esbarra de mal jeito em seu caminho, uma pendenga na justiça. Dizendo em alto e bom som, que não precisa de ninguém, não quer a companhia de quem quer que seja, pois odeia gente.

Mas isto é outra história. Por enquanto vamos ver o que faz o Carlinhos.



quarta-feira, 1 de abril de 2009



De frente ao Supermercado Inca, no centro da cidade, fica o Hotel Corumba, que recebeu o mesmo nome da cidade nos antigamentes dela, quando nem havia sido imaginada, na rua Comendador Ramon. Esse hotel, de primeiro, foi a casa que o Antonio Ramon mandou construir para ele e a nova mulher, inaugurando os tempos de riqueza. Mandou trazer de Portugal todo o acabamento da casa. Os azulejos portugueses, dos quais ainda restam alguns na fachada do hotel, as sedas de cama, os linhos da mesa, as porcelanas inglesas também foram primeiro à Portugal, antes de aportar no Brasil.
Para receber toda a carga que importara, Antonio Ramon, que estava para ser feito Comendador, com a comenda comprada ao Rei do Brazil, preparou dois homens de sua inteira confiança. Mulatos os dois, já produtos da miscigenação. Altos, com as pernas muito compridas e finas, quase que as mulas passavam por debaixo deles. De um, mandou tirar os dois olhos para que ficassem mais apuradas a audição e a fala. Do outro, cortou a língua e furou os tímpanos, para que a visão tivesse mais acuidade. Um dormia de dia, durante as longas viagens entre as Minas Gerais e o Porto de Estrela, no Rio, para pegar as encomendas, e levá-las intactas a seu dono. Dormia, encurvado sobre a mula, que embalava seu corpo. Era o cego quem dormia assim, Para descansar das noites em claro, em que era só ouvidos. Enquanto o que enxergava ia comboiando a tropa pelos caminhos. Sem fazer muito barulho, evitando lugares difíceis de passar, porque como o patrão disse o cego era mais importante, ele tava com o ouvido tão treinado que podia ouvir qualquer um que chegasse de maldade para roubar a tropa. Como a casa era uma enormidade, um luxo!, para mais de sessenta quartos, oito cozinhas, vinte e duas salas e, de metro em metro, na casa inteira tinha uma porta ou janela para abrir. Antonio Ramon contratou um empregado. Este já veio manco de nascença. para fazer uma só coisa: abrir e fechar todas as janelas da casa, todos os dias, fizesse chuva ou sol. O manco começava de manhã bem cedo o seu serviço. Antes das cinco. E quando havia lua, e ela já estava bem alta no céu, ele terminava de fechar a última janela. As janelas do quarto de sua mulher eram abertas ou não, segundo seu desejo, por um dos 10 criados que a serviam. As dele, do seu quarto, o patrão fazia questão de abrir ele mesmo. Escancarava as janelas que davam para a rua de terra batida, rua vermelha do barro bom de plantar café, metade do ano trazia poeira, na outra metade, lama. Aos poucos Antonio Ramon e sua nova mulher, de quem ninguém lembra o nome, foram povoando a casa. E, juntamente com sua casa foi povoando a cidade de dezenas de Ramons, legítimos e bastardos. E sem conseguir gostar de nenhum deles com o mesmo amor que sentira por sua filha Maria que, agora, guardava sua fortuna. Nesta época não existia o Supermercado Inca. Para abastecer a dispensa os Ramons tinham suas terrras de plantação e criação. Mas as iguarias tinham de mandar trazer da Europa. Era um ir e vir que não parava nunca. Os bons chás, ervas de cheiro apetitoso, caixas de bacalhau, chocolates, licores e perfumes, bolos e biscoitos, e bebidas, muitas bebidas. Fumo para cachimbo. Charutos . E uma raiva profunda quando piratas abocanhavam a carga, impedindo que esta chegasse. Ainda bem que Antonio Ramon preferia a bagaceira da terra, feita em suas fazendas, que lhe ardia dos gorgomilos aos bagos, quando a tomava de um trago só. Os mulatos tropeiros de Ramon, um cego e outro mudo e surdo, salvaram por várias vezes, de negros assaltantes, negros fugidos, os tesouros que seu amo mandava vir de Portugal. O cego chamava-se Simão e o surdo-mudo ficou com o apelido de Quém-quém. Porque ninguém nunca contou. Dizem que foi sempre assim. Acontece que Simão e Quém-quém, de tantas idas e vindas ao Rio de Janeiro, tornaram-se conhecidos e gabados por sua honestidade e fidelidade ao amo. Um dia, chovia como se fosse acontecer a enchente das goiabas. Um jovem bem posto, acompanhado por um séquito de serviçais, montado num cavalo de dar inveja de bonito e tão bem ornamentado, abria ala para uma carruagem bem acolchoada onde estava uma senhora, que por semelhança parecia sua mãe, e algumas mucamas. Ele, homem desabrido, aproximou-se daquele casarão e ficou olhando. Olhando muito, avaliando. Em seguida rumou para a melhor hospedaria da cidade, onde acomodou a senhora e providenciou pouso para a criadagem e os animais da tropa. Era o conde de Maciel e Juncado, o jovem rapaz, que viera trazer ares metropolitanos à pequena cidade do interior! Corumba modernizava-se! Ao saber da estada do nobre na cidade, Antonio que não gostara inicialmente da chegada dos intrusos, mandou sua mulher ataviar as filhas mais velhas, Mariela, Maristela, Marivalda e Marilda. E mandou que fosse feito um baile de gala para homenagear os visitantes. E foi neste baile que Marilda encontrou seu esposo, com quem deu início à linhagem dos Ramon Maciel Juncal. Ao casar com o conde Reinaldo, Marilda formou a família mais fecunda de todo o Brasil e do sul de Minas Gerais. Em cada cartório, banca de advogado, escritório de engenharia, em cada comércio bem sucedido, no ramo imobiliário, enfim, em todas as atividades existentes há um Maciel Juncal. Criaram e fundaram várias cidades famosas. Se espalharam por São Paulo e Rio de Janeiro. E desta última cidade, alguns séculos mais tarde, retornou para morar em Corumba, a Renida, que comprou o lote do Carlinhos. Ela recebeu este nome em homenagem aos antepassados distantes, Reinaldo e Marilda. Renida, a neta solitária, que perambula hoje pela cidade, desprezando os mineiros, e botando contra cada um que esbarra de mal jeito em seu caminho, uma pendenga na justiça. Dizendo em alto e bom som, que não precisa de ninguém, não quer a companhia de quem quer que seja, pois odeia gente. Mas isto é outra história. Por enquanto vamos ver o que faz o Carlinhos.