segunda-feira, 13 de abril de 2009

pois é, não é mesmo? XX


segredo para recolher a baba do boi




Ontem de manhã Zazá me convidou a ajudá-la numa simpatia para o Carlinhos não beber mais.
Fomos na fazenda ao lado pegar a baba de um touro preto.
Como o touro não se resolvia a babar começamos a provocar sua salivação com uma cenoura.

O segredo consiste em botar a cenoura perto da boca do touro e tirar, deixar ele dar uma lambida e tirar a cenoura. O desejo por ela faz o touro salivar. A baba escorre e fica fácil, com um pote de boca larga, recolhê-la.
Depois é só misturar essa baba na pinga que a pessoa bebe. Será, certamente, o último gole do bebedor. Nunca mais ele porá álcool na boca sem vomitar as tripas.

Mas antes de falar sobre o Carlinhos, deixe que me apresente. Afinal, estamos juntos há várias palavras e vocês não sabem quem eu sou. Meu nome é Antonio. Sou um rapaz jovem, alto, atlético, bonito, mas com um pequeno defeito para alguns: tenho um olho azul e outro verde. Diz o Carlinhos que sou a reencarnação do tropeiro Simão. Porque, conta a lenda, que ele tinha os olhos assim, antes que o Antonio Ramon os furasse. Mas eu não acredito nessas coisas.

Vim para esta cidade do interior me curar da doença da civilização. Explico: fiquei com medo das grandes cidades. Saía para trabalhar com a certeza de não voltar para casa, pois algum assaltante me mataria, ou uma bala perdida viria se encontrar no meu corpo. Adoeci de medo. A chamada doença do pânico. Me encostei pelo INSS e saí pelo interior. Até que parei por aqui. Meu padrinho, que é influente, conseguiu me aposentar. E cá estou. A cada dia mais tranqüilo e seguro. Tanto, que para ativar minha vida, resolvi contar em livro estas histórias que escuto aqui, procuro inclusive reproduzir a maneira de falar que não é só deste povo. Precisa até ser dicionarizada!. Quem sabe algum editor publica. E o povo gosta e compra os livros. Quem sabe?
Lá na cidade parei também de fazer sexo. Tinha medo de pegar aids. Mas um medo tão grande, que não conseguia acreditar que uma camisinha, coisa tão simples, fosse me proteger da doença. Nos momentos mais aflitos, em que não tinha jeito, ia para o banheiro e me masturbava. Depois isso não foi mais preciso. Com a idade e a doença esqueci o sexo. Acho que na minha idade é assim! Entrei numa academia e fui malhar. Queimava lá todos os desejos!
Aqui, no interior, esta parte da minha vida já começa a ser resolvida. Encontrei uma moça de boa família, que com o tempo foi empobrecendo, como todos as famílias daqui. Eles têm muitas terras mas dinheiro que é bom, nada. Ela é fogosa, gosta de uns amassos. Estamos ficando. A Rô tem um jeito de beijar na boca que até parece coisa de cinema! Vive molhada! Ponho os dedos lá e chega a escorrer pela minha mão! É mulher e tanto, a Rô.

O Pedrinho, vou falar sobre ele agora, começou a vida alugando cavalo na praça. A família dele era muito pobre. São nove filhos ao todo. O pai, acostumado a lidar na roça, veio trabalhar para um político da cidade, que era o mesmo patrão na fazenda.
Alguns dos filhos, na cidade, foram até a segunda série primária. Mas depois, pela necessidade de trabalhar, largaram os estudos.
O pai conseguiu comprar um cavalinho que as crianças levavam para a praça nos finais de semana, e alugavam para turistas.
Dizem também, não sei se é verdade, que às vezes ficavam também com a carteira de um ou outro turista, principalmente se fosse gringo!
E assim, é o que dizem, foram comprando mais cavalos e até uma charrete. Pedrinho tomava conta da charrete.
Daí, uns anos depois, apareceu com um caminhão zerado pra fazer frete. Comprava plantas e legumes na roça para vender na cidade. Na roça pagava uma tutaméia. Na cidade, metia a mão. O irmão dele ainda é hoje dono do único sacolão da cidade. O outro irmão tem um depósito de frutas e legumes, onde chegam caminhões vindos de todo o sul de Minas. Ele fornece para todas as quitandas e mercados pequenos.
O tal caminhão, dizem que o Pedrinho levou para o Paraná, deu sumiço nele, voltou para a cidade e disse à Companhia de Seguros que tinha sido roubado. Falamn que ele vendeu o caminhão no Paraná, para uma turma que vendia no Paraguai.
A companhia pagou o seguro, e com todo o dinheiro ele montou uma loja de carros usados e começou a ganhar muito dinheiro. Comprou até a loja, que fica na entrada da cidade e as terras em volta dela!
Além do mais comprou a casa dele, na Rua Comendador Ramon, com dois andares. No de baixo fez lojas, que aluga para o comércio .
Depois comprou uma fazenda que acabou vendendo para uns paulistas, na época em que tinha uma dívida com o Banco Real. Não vendeu a fazenda toda. Só a sede e algumas terras. Ficou com o cafezal e muitos alqueires de pasto. Num pedaço fez este condomínio onde estou morando, que dá para a parte rica da cidade. Num outro pedaço, que dá para a parte pobre, para os lados do asilo, fez um loteamento para o pessoal de baixa renda.
Ele tem um monza zero, dois fiats, uma cara redonda com olhos espremidos, olhando sempre com desconfiança. E por mais que cuide falar certo, fala errado, abusando da falta de concordância e reinventando a língua. A roupa dele é calça jeans, bem vincada, e camisa polo. Sapato mocassin. Usa cinto de couro e tem um rolex verdadeiro no pulso.
É difícil dizer se ele é baixo mesmo ou engordou demais e, por isto,, parece mais baixo do que é. Tem um sinal grande, como uma verruga, no lado direito do lábio superior. Quando fica nervoso, o sinal treme. Na hora de cumprimentar as pessoas ele estica o braço duro, mas a mão fica mole dentro da mão de quem ele cumprimenta. Idade indefinida. O rosto é mais velho do que o corpo. Marcas da miséria.
Se ele prometer que vai fazer alguma coisa, pode esquecer, porque não vai.. Meus amigos, dele diriam assim: Pô ! cara sinistro!
Não olha ninguém de frente. Quando se captura o olhar dele, no fundo do olho apertadinho, há muita raiva e desconfiança.
Ele me olhou assim quando comprei o terreno, e cumprimentou com a mão mole, depois que dei o sinal. Sinistro ele, muito sinistro!

Diz Miranda que ele tem parte com o diabo.
No condomínio ele separou dez lotes para ele. Tem quase um alqueire mineiro. Cercou tudo com régua de eucalipto. No fundo fez um lago artificial. Caiou de branco as réguas da cerca e os pés das árvores. Soltou lá um cavalo manga-larga inteiro que vive correndo atrás da égua da Mariângela. Um cavalo lindo, calçado, marrom, ou baio, como eles dizem, macho paca! Ou Pedrinho se escanhoa muito bem ou é glabro.

Já Carlinhos é diferente. Veio de uma família abastada, tradicional na cidade. no estado e na história. Herdeiros de Fernão Dias Paes Leme, o caçador de esmeraldas.
Até hoje ele tem pendurado no pescoço, não tira nem para tomar banho, o medalhão de prata portuguêsa que o bandeirante usava. Com o passar do tempo o material, a prata do medalhão, está fininha, quase quebrando. Não se consegue ler a inscrição em latim, que o rodeia. Algumas letras desapareceram. Carlinhos já mandou fazer a quinta argola presa ao medalhão. Quatro delas já quebraram.

A mãe de Carlinhos teve quatro filhos; dois homens e duas mulheres. Todos estudaram. Mas a filha mais preparada, a que era professora de faculdade morreu de repente, com câncer na cabeça, lá nela, e quando foi ver, já era o fim. Não deu pra fazer nada!
Carlinhos é um homem alto, aloirado, os pelos da barba cerrada são louros, misturados com fios brancos. Magro. Dos dentes da boca, só sobrou um punhado em baixo. Na arcada superior há um canino sofrido, comprido e esverdeado. Mas é um homem bonito! Quando bebe fica mais terno que o normal e derrama toda sua carência no colo do interlocutor.
É um homem do passado. Com muita delicadeza, afasta a cadeira da mesa para a mulher sentar. A dos outos que a dele,a Zazá, não cuida.
Ele combina as coisas com Pedrinho, a quem chama de amigo e fica esperando, pelo resto da vida, que o outro cumpra sua parte. Por mais que Zazá o atormente para agir a vida e deixar Pedrinho para lá, ele diz que deu a palavra de homem, e palavra dele não volta atrás!
A família do Carlinhos, antigos ricos, como diz o ditado: “avô rico, filhos remediados, netos pobres.” empobreceu. As terras, mal cuidadas, foram divididas várias vezes entre os herdeiros, ficando cada vez menores. Os herdeiros não tinham dom para trabalhar a terra, como diziam, e não sabiam fazer mais nada. Os encargos trabalhistas com empregados ficavam cada vez mais altos e, por isso, o número de trabalhadores diminuía. Então era menor a produção, menos dinheiro ganhavam menos dava para pagar, mais endividados ficavam e as terras, a cada ano, estavam mais abandonadas ao capoeiral.
Os empréstimos no Banco do Brasil levavam qualquer produção que houvesse ,além de nacos da terra para pagar as dívidas. A venda dos produtos não compensava os gastos. Quando não era a geada, a seca, ou o excesso de chuva acabava com a plantação.
Até que o pai resolveu transformar tudo em pasto para o gado. Depois morreu!
Quando o pai do Carlinhos morreu, a terra foi mais dividida, entre os filhos e a mulher viúva.
E tudo acabou no que está hoje. Carlinhos loteando alguma coisa para fazer dinheiro, dinheiro que nunca chega, porque na aflição ele acaba vendendo por uma tutaméia.
Construiu perto da pedreira o matadouro municipal, onde trabalha de segunda à sexta-feira. O matadouro tem o título de municipal, mas a matança é clandestina, de gado doente, vaca prenhe, pronta para parir, mas que tem mamite, ou alguma outra inflamação, uma tragédia, sei lá. No sábado e no domingo bebe. Como Carlinhos bebe! entorna garrafas e garrafas de pinga e nada de fazer efeito mais. Durante as noites da semana ele bebe também. Mas vinho. Garrafões inteiros, cada noite, de Sangue de Boi.
A pedreira está desativada e, de vez em quando, rola lá de cima uma barreira. Aí Zazá manda o Julio, com uma enxada, limpar a estrada que é toda deles. Só quando o rio da glória enche demais é que não tem jeito. É esperar que as águas baixem para usar a estrada de novo.
Eu sempre pego a estrada do matadouro quando vou para Baependi, ou quando a estrada de cima está enlameada demais.
As carcaças estão sempre lá. Penduradas pelos ganchos nos tubos de metal. Novas carcaças, outras carcaças. Às vezes, paro o carro e as fico vendo vermelhas, os ossos das costelas definidos, a escorrer sua trilha de sangue. E se fossemos nós, penso, gente dependurada? E se fosse futuro e não houvesse mais alimento no planeta e as boiadas de seres humanos estivessem aguardando no curral para serem esquartejadas? É certo que viriam das regiões mais pobres do Brasil. Teriam a carne dura, crestada pela fadiga, ou viriam da África, e de outros países do terceiro e do quarto mundo. Mas não para o matadouro municipal do Carlinhos. Acredito que a carne daqui viria do sertão do norte e nordeste do Brasil e talvez de Pirapora, onde compram o gado bem barato, Teófilo Otoni, Pedras Azuis, sei lá! Será que todos comeríamos desta carne? E se não mais houvessem verduras, nem raízes. O que seria dos vegetarianos e macrobióticos?
Aí me lembro que o futuro é agora. Que não existe alimento para todas as pessoas do planeta. Que a maioria morre de fome e vive se esvaindo de pura inanição. Que a morte por desnutrição é hábito de cada segundo. E com desperdício. As carcaças das crianças mortas ou dos adultos não são aproveitadas para saciar a fome dos que ficam se esvaindo de pura inanição. Por falta de recursos para o enterro algumas são enterradas no fundo dos quintais, onde os predadores se aproveitam dos dejetos, abandonadas aos vermes e aos urubús.
Aí tenho uma recaída do meu medo. Volto para trás, como eles dizem aqui e fico trancado dentro de casa por dias e dias, dias e dias. Até que a emoção esquece, eu esqueço, mas antes juro que nunca mais passarei pelo matadouro. E esqueço também. O fascínio me leva a parar lá de novo e ficar olhando as carcaças escorrendo sangue, recém abatidas.

-Vou te contar uma coisa, me disse Carlinhos. É vérico, como falava meu pai. Durante muitos anos procurei por uma Maria, de l7 anos e virgem. Não dei sorte. O tesouro não era para ser meu. Quando a vontade foi fraquejando, quando a saudade da casa de minha mãe se tornou quase que uma doença, voltei. Vi que já estava na hora de casar. Ter mulher, uma casa e filhos. Meu pai, coitado, já era muito idoso. Aí, com o prestígio dele consegui o cargo de delegado municipal para mim. Naquele tempo podia! Não precisava ser advogado nem ter muito estudo. Fiquei mais de vinte anos no cargo. Quando a lei mudou e tive de sair da polícia, montei o matadouro. E aqui estou. Aqui estamos. Sua doença trouxe você pra cá e ficamos amigos. Você reencarnando o tropeiro Simão. E eu não sei reencarnando quem. Só nos falta agora uma Maria e vontade de cavar o tesouro. Se a gente achar vou comprar uma Cheroquee.
-Não tenho gana de ouro não Carlinhos. Tenho o que quero. Não mais.
-Cada cabeça cada sentença, já dizia meu pai. Eu ainda quero o ouro. Só perdi a gana de cavar! Coragem pra matar eu tenho. Tô no fim da vida. Mal consigo sobreviver com esse governo tomando tudo o que a gente constrói. Eu quero, quero sim, o ouro.

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