quarta-feira, 2 de setembro de 2009

XXII pois é, não é mesmo?

a vida ronda



Teve um ano aqui na cidade, se não me engano em 68, quando mataram àquele comunista do Calabouço, que nós tivemos aqui, no mínimo, cinco mortes por mês. Cada um morria de uma coisa. Mas uma dama dessa espécie é a primeira vez que vejo morrer de tiro. E começou assim. No primeiro dia de janeiro àquele um teve um infarto e morreu. Inaugurou o ano igual ao Antunes. E todo mundo foi morrendo de carreirinha. Gente que ainda era para estar viva. Era velho, novo, criança. Que ano! Esse também promete. Ainda mais fim de milênio. Jesus disse: “ a mil chegarás. De dois mil não passarás.”
Nisso chegou a polícia, que tem um carro velho com a sirene tocando sempre, não pára. Dizem que não tem conserto, até ponta pé ela levou e continua sirenando. É ligar o carro e ela começa a tocar. E uma lambreta que é dirigida pelo mesmo indivíduo sempre, o cabo Giordano, uma íngua, como dizem.
-Quem matou, perguntou o Gauchão, delegado local.
-Quem vai saber, respondeu zangado Carlinhos.
Foi Gauchão quem ficou com seu cargo de delegado.
-Nós vamos saber já, já. Dêm uma batida por aí. gritou para os soldados. Prendam todos os suspeitos.
-Ara, Gauchão. Vá com calma! Suspeitos de quê? Isso é arbitrariedade sua!
-O Delegado agora sou eu Carlinhos. Mando prender quem eu quero. Os caras de sempre, pôrra! Os suspeitos ! E se duvidar prendo você também!
Carlinhos avermelhou dos pés à cabeça. Ia revidar quando Zazá chegou e o empurrou para casa. Vambora Carlos, Vambora! Gritava e puxava o marido pelos braços.
Carlinhos foi.
- Vou querer o teu depoimento, viu Carlinhos? e o teu também, você aí, gritou em minha direção.
-Vai de fuder ,gritava Carlinhos com a voz rouca.
-Vai te meter com tuas negas! veio Mariângela em socorro.
Zazá botou todo mundo pra dentro de casa e passou ferrolho na porta. Vocês sosseguem! Vocês sosseguem. Daqui a pouco ele prende vocês por assassinato. Bico calado todo mundo. E você, seu Antonio, é melhor ir pra casa. Num caso desses a gente se finge de morto. E toma um calmante para acalmar os nervos. Toma logo que chegar!
-Deixa a polícia ir embora, dona Zazá. Senão eles vão querer me parar!
-Meu Deus, mais um coitado pra proteger. Deus que me acuda. Quem não deve não teme seu Antonio.
E Zazá foi pra cozinha fazer chá para os nervos da gente que estavam em pandarecos.
No final da tarde do dia seguinte Carlinhos veio me contar que Renida morreu com dois tiros na cabeça. Daí tanto sangue. E que a polícia não tinha nenhuma pista.
-Mas eu sei o que foi.
-Sabe nada, Carlinhos. Sabe como?
-Renida, pode escrever, veio atrás do tesouro. Deve de ter descoberto uma pista importante e mataram ela. Pode escrever!
Fiquei com a pulga atrás da orelha. Como diz o Carlinhos. Olhei a casa da Renida no tope do morro, a mais alta do lugar. Mesmo sendo a mais alta o sol se põe primeiro na casa dela. Fica naquele pedaço uma margem angular de sombra. O verde da grama é muiro escuro. O branco da casa agride de claridade a paisagem que, nesta hora, pede recolhimento. Renida estava, como sempre, na balaustrada da varanda, olhando o vale. Com os braços apoiados nas réguas de madeira. O tailleur azul-marinho, que a fazia mais magra do que estava realmente. Olhando as coisas do vale. Só. Absolutamente só. Com sua televisão e as revistas de palavras cruzadas.
Desde que mudou para a casa nova, em começo de novembro do ano passado, que só come biscoito. Come biscoito e fuma cigarros. Um atrás do outro. Emagreceu. E muito. E não adianta levar comida para ela. Não aceita.
Eu sabia que estava vendo minha imaginação ver Renida na varanda olhando o vale. Que imaginação se acostuma também com realidade. E para se desacostumar leva tempo. Renida ainda ia ficar na varanda por muito tempo!
No dia seguinte, eu ainda estava com medo de sair de casa, Carlinhos foi prestar depoimento na delegacia e. na volta, passou por aqui. Meu médico havia atestado que eu estava em estado de choque e que não poderia ser ouvido nos próximos dias, até melhorar.
-Que Renida morreu que nada, veio dizendo Carlinhos. Vaso ruim não quebra!
-Mas se nós vimos ela morta! botando sangue pela cabeça!
-Não morreu! Está tão viva quanto eu e você. O Gauchão me contou. Levaram ela para autópsia, e na mesa começou a se mexer. Ficou de pé e discutiu. Queria saber onde estava, o que faziam com ela. Essas coisas da Renida... As balas fizeram só sangue. Mais nada. E desmaiaram ela. Entraram por um lado, saíram por outro, disse o Gauchão. Sem atingir qualquer ponto vital. Resultado, lavaram Renida para o pronto socorro e ela está lá tomando soro. Zazá está pau da vida. Diz que se ela era difícil antes do tiro, agora então vai ficar impossível!

terça-feira, 21 de abril de 2009

pois é, não é mesmo, XXI



a ronda da morte




Aqui nesta cidade é mesmo assim, explicou Carlinhos. O um fica devendo no banco, vende tudo o que tem dizendo que é para pagar, abre outra conta bancária em outra cidade, em nome dos filhos, e vai juntando dinheiro. Um empresta daqui, outro dali, mas a dívida dele não diminói. Só aumenta. Os agiotas começam a ficar impacientes. Mas ainda lhe fornecem mercadoria. Tô te contando a história de um açougueiro que fez isso! É só um exemplo, mas a maioria faz como ele. Só em banco devia pra mais de duzentos mil reais! Penhorou tudo o que tinha. E mesmo penhorado foi vendendo. Vendeu a casa, o açougue , o sítio e, mesmo com o açougue vendido, não entregava, continuava com as carnes lá, atendia ao povo. Até que um dia estourou tudo. Processo daqui, processo dali. O promotor chamou. Ele já tinha pedido concordata. Tô falido, quebrado, respondeu pro promotor que era amigo dele. Só tenho o dia e a noite!
O promotor não pode fazer nada. O homem tá duro! Não tem um tostão. Nem propriedade, nem nada.
Aí o açougueiro sumiu. Foi embora da cidade, se dizendo envergonhado. Desapareceu por anos a fio. Muito tempo depois dei de cara com ele. Carro do ano, nos trinques, mansão na praia, sítio nas montanhas, um vidão!
-Fiquei te devendo um dinheiro rapaz, ele coça a cabeça quando me encontra. Mas sabe como é, o real, ninguém compra mais nada. Tudo muito difícil! E agora, como é que a gente faz?
Aí encabulei. E eu disse. Não tenho vergonha de dizer não! Vergonha eu tive na hora em que ele falou isso. Eu disse ara! deixa isso pra lá! pra que serve um amigo se nessas horas não ajuda?
Tomamos uma pinga. Nos demos um abraço, um aperto de mão, recomendações às famílias e fomos embora.
Na estrada, de volta pra casa, meu rosto tava ardendo de vergonha. Vergonha de mim e dele! De mim que ainda tomei pinga com o safado. Dele, dele, ara, sei lá porque. Porque ele mesmo tava feliz da vida!
E é isso que vai contecer com o Pedrinho. Deve pra mais de duzentos no Banco Real, outros duzentos no Bemge. Está com tudo penhorado. Vendeu a fazenda penhorada por cento e cinqüenta. O comprador tá doido pra regularizar a compra e não consegue. Vendeu a casa onde mora, que tá penhorada também, por cento e oitenta mil ,pro irmão e tá pagando um aluguel de seiscentos reais, para esse mesmo um. A loja onde vende carro tá penhorada e ficou fechada pra mais de ano por causa do imposto de renda. Ganha um dinheirão com os loteamentos que tem e não paga nada.
Num domingo a gente foi pro botequim e ficou bebendo. Aí falou: já tou cheio desta cidade. Um dia destes compro uma mansão em Ubatuba, um Cheroquee, e vou pra lá. Fiquei com a pulga atrás da orelha. Ara, se ele ainda tá apertado é porque tá pagando juros disso tudo, ou não paga nada e guarda o dinheiro.
Eu acho que ele vai fazer o mesmo que o açougueiro fez. Na hora em que as coisas ficarem pretas ele se manda! Vai pruma mansão em Ubatuba, na beira da praia.
Pedrinho era quitandeiro. Quitandeiro dos bons. Os irmãos dele, todos, vivem disto. Um tem dois sacolões. Mas só fala de milhão pra cima. Ficou com mania de grandeza! Agora é assim.
Noutro dia ele veio no escritório aqui do matadouro saber se eu tinha um tempinho. Falei que pros amigos tinha todo o tempo do mundo. É o seguinte Carlinhos, ele falou, aqui tem muito trabalho de terraplanagem. E na cidade ninguém mexe com isso. Então eu recebi o dinheiro da fazenda e pensei: vou à Juiz de Fora comprar um trator de esteira, uma retro-escavadeira e uma patrol. Quero saber se você pode ir comigo.
Claro que posso Pedrinho, eu falei, É pra hoje, é pra amanhã? Me avisa só com um tempinho de antecedência que eu vou. Falou que ia avisar e saiu.
Aí fui tomar um cafezinho no botequim e encontrei o Marcelo, filho dele. Contei a história, todo feliz pelo Pedrinho, que era negócio certo. Aí levei um susto. O Marcelo me avisou que era loucura do pai. Que ele não tinha dinheiro nem pra comprar uma galinha. Nem pra comprar uma galinha!
Tem uma senhora que comprou um terreno dele. Encontra a gente e mete o malho nos mineiros. Só fala mal. Mas vem todos os anos passar o verão aqui. Aí diz que tudo que tem de ruim no Brasil começou em Diamantina, com o Juscelino Kubistcheque. Que na mania de grandeza dele, que é coisa de mineiro, cismou de construir Brasília e endividou todo o povo no FMI. Vendeu o Brasil inteiro pros americanos. E coisas assim. Ara, se ela acha que a gente é tão ruim assim, o que vem fazer aqui? Põe o Pedrinho na justiça, ara!
Pior é o Fernando Henrique, que é carioca, e mandou pro Congresso uma lei privatizando todas as florestas do Brasil. Inclusive a amazônica! E o Congresso vai engolir tudo numa boa, como sempre. E não tem mineiro indo pro Rio falar mal de carioca não!
Que adianta? Eles fazem o que querem!
E ainda fica o Lima, que saiu lá de Pernambuco,de Catende, onde morria de fome, pra fazer artesanato aqui, dizendo que Minas gerais é terra de reencarnação de judeu. Que mineiro é todo mundo judeu! Ara! que veio fazer aqui. Volta pra Pernambuco. Ou fica aqui sem xingar a gente uai!
Você quer saber mesmo de quem é a culpa? É da televisão! É do Roberto Marinho, principalmente. Do Silvio Santos nem tanto! ele é mais humilde. Mas lá na tevê do Roberto Marinho tudo é grandioso. O rico é muito rico. não existe pobre no país. Quando existe, o pobre é bandido. É o assassino!
Todo mundo quer uma vida daquela. Ser povo de novela. Todo fazendeiro é rico, tem jatinho! Fazendeiro pobre, que é a maiorira, não existe. O resto do pessoal é peão burro e sem terra. No final da novela os sem terra ganham fazendas e vão ser fazendeiros ricos. Ninguém fala em dificuldade . Em chuva demais e seca que atrapalha a colheita. É tudo fácil, abundantes. Pegam cada mulheraça que só vendo! Viajam o mundo inteiro pra comprar cada gadão! Eu heim, ara! quem não quer ser assim?
Foi isso que virou a cabeça do Pedrinho! Nada mais nada menos do que a televisão.

E foi justo nessa hora que Renida desceu a ladeira da casa lá dela. Naquele passo meio desesperado, abanando a mão em chamamento. Cheguei a ouvir meu nome ser pronunciado por duas vezes. Antonio! Antonio! Depois dois estampidos. Olhamos para o céu eu e Carlinhos para ver de onde estavam soltando os fogos. O sinal de que a droga tinha chegado. E voltamos a olhar, juntos , sincronizados, havia um ôco total na natureza, nenhum pio, e nossos olhos se encontraram tanto ao olhar para cima, para o céu, como ao olhar para a casa da Renida. E a vimos. Estirada na estrada, no meio de uma poça sangue, que como se fosse nascente, mina, escorria pelo barro vermelho da estrada. Estacamos em estupor. Não dava para acreditar!
Julio chegou correndo, vindo dos lados do matadouro e tentou levantar Renida do chão. Foi quando Carlinhos lembrou de seu tempo de delegado.
Solta ela! solta ela! cê tá doido? Vão encontrar suas digitais nela! E se mexer no corpo atrapalha o trabalho da polícia. E enquanto acocorava ao lado do corpo, tirava um espelhinho do bolso. Encostou no nariz da Renida e nada. O espelho não embaçou.
-Tá morta, confirmou.
-Mas por que você carrega este espelho no bolso, perguntei?
-Hábito de delegado, disse com autoridade, manda a Zaza chamar a polícia. E tirou a camisa que colocou sobre o rosto da morta.
-Segunda morte neste início de ano, resmungou. Em quinze dias duas mortes no mesmo mês. Vamos mal. muito mal. Isso é sinal de mau agouro. A morte ronda a gente...

segunda-feira, 13 de abril de 2009

pois é, não é mesmo? XX


segredo para recolher a baba do boi




Ontem de manhã Zazá me convidou a ajudá-la numa simpatia para o Carlinhos não beber mais.
Fomos na fazenda ao lado pegar a baba de um touro preto.
Como o touro não se resolvia a babar começamos a provocar sua salivação com uma cenoura.

O segredo consiste em botar a cenoura perto da boca do touro e tirar, deixar ele dar uma lambida e tirar a cenoura. O desejo por ela faz o touro salivar. A baba escorre e fica fácil, com um pote de boca larga, recolhê-la.
Depois é só misturar essa baba na pinga que a pessoa bebe. Será, certamente, o último gole do bebedor. Nunca mais ele porá álcool na boca sem vomitar as tripas.

Mas antes de falar sobre o Carlinhos, deixe que me apresente. Afinal, estamos juntos há várias palavras e vocês não sabem quem eu sou. Meu nome é Antonio. Sou um rapaz jovem, alto, atlético, bonito, mas com um pequeno defeito para alguns: tenho um olho azul e outro verde. Diz o Carlinhos que sou a reencarnação do tropeiro Simão. Porque, conta a lenda, que ele tinha os olhos assim, antes que o Antonio Ramon os furasse. Mas eu não acredito nessas coisas.

Vim para esta cidade do interior me curar da doença da civilização. Explico: fiquei com medo das grandes cidades. Saía para trabalhar com a certeza de não voltar para casa, pois algum assaltante me mataria, ou uma bala perdida viria se encontrar no meu corpo. Adoeci de medo. A chamada doença do pânico. Me encostei pelo INSS e saí pelo interior. Até que parei por aqui. Meu padrinho, que é influente, conseguiu me aposentar. E cá estou. A cada dia mais tranqüilo e seguro. Tanto, que para ativar minha vida, resolvi contar em livro estas histórias que escuto aqui, procuro inclusive reproduzir a maneira de falar que não é só deste povo. Precisa até ser dicionarizada!. Quem sabe algum editor publica. E o povo gosta e compra os livros. Quem sabe?
Lá na cidade parei também de fazer sexo. Tinha medo de pegar aids. Mas um medo tão grande, que não conseguia acreditar que uma camisinha, coisa tão simples, fosse me proteger da doença. Nos momentos mais aflitos, em que não tinha jeito, ia para o banheiro e me masturbava. Depois isso não foi mais preciso. Com a idade e a doença esqueci o sexo. Acho que na minha idade é assim! Entrei numa academia e fui malhar. Queimava lá todos os desejos!
Aqui, no interior, esta parte da minha vida já começa a ser resolvida. Encontrei uma moça de boa família, que com o tempo foi empobrecendo, como todos as famílias daqui. Eles têm muitas terras mas dinheiro que é bom, nada. Ela é fogosa, gosta de uns amassos. Estamos ficando. A Rô tem um jeito de beijar na boca que até parece coisa de cinema! Vive molhada! Ponho os dedos lá e chega a escorrer pela minha mão! É mulher e tanto, a Rô.

O Pedrinho, vou falar sobre ele agora, começou a vida alugando cavalo na praça. A família dele era muito pobre. São nove filhos ao todo. O pai, acostumado a lidar na roça, veio trabalhar para um político da cidade, que era o mesmo patrão na fazenda.
Alguns dos filhos, na cidade, foram até a segunda série primária. Mas depois, pela necessidade de trabalhar, largaram os estudos.
O pai conseguiu comprar um cavalinho que as crianças levavam para a praça nos finais de semana, e alugavam para turistas.
Dizem também, não sei se é verdade, que às vezes ficavam também com a carteira de um ou outro turista, principalmente se fosse gringo!
E assim, é o que dizem, foram comprando mais cavalos e até uma charrete. Pedrinho tomava conta da charrete.
Daí, uns anos depois, apareceu com um caminhão zerado pra fazer frete. Comprava plantas e legumes na roça para vender na cidade. Na roça pagava uma tutaméia. Na cidade, metia a mão. O irmão dele ainda é hoje dono do único sacolão da cidade. O outro irmão tem um depósito de frutas e legumes, onde chegam caminhões vindos de todo o sul de Minas. Ele fornece para todas as quitandas e mercados pequenos.
O tal caminhão, dizem que o Pedrinho levou para o Paraná, deu sumiço nele, voltou para a cidade e disse à Companhia de Seguros que tinha sido roubado. Falamn que ele vendeu o caminhão no Paraná, para uma turma que vendia no Paraguai.
A companhia pagou o seguro, e com todo o dinheiro ele montou uma loja de carros usados e começou a ganhar muito dinheiro. Comprou até a loja, que fica na entrada da cidade e as terras em volta dela!
Além do mais comprou a casa dele, na Rua Comendador Ramon, com dois andares. No de baixo fez lojas, que aluga para o comércio .
Depois comprou uma fazenda que acabou vendendo para uns paulistas, na época em que tinha uma dívida com o Banco Real. Não vendeu a fazenda toda. Só a sede e algumas terras. Ficou com o cafezal e muitos alqueires de pasto. Num pedaço fez este condomínio onde estou morando, que dá para a parte rica da cidade. Num outro pedaço, que dá para a parte pobre, para os lados do asilo, fez um loteamento para o pessoal de baixa renda.
Ele tem um monza zero, dois fiats, uma cara redonda com olhos espremidos, olhando sempre com desconfiança. E por mais que cuide falar certo, fala errado, abusando da falta de concordância e reinventando a língua. A roupa dele é calça jeans, bem vincada, e camisa polo. Sapato mocassin. Usa cinto de couro e tem um rolex verdadeiro no pulso.
É difícil dizer se ele é baixo mesmo ou engordou demais e, por isto,, parece mais baixo do que é. Tem um sinal grande, como uma verruga, no lado direito do lábio superior. Quando fica nervoso, o sinal treme. Na hora de cumprimentar as pessoas ele estica o braço duro, mas a mão fica mole dentro da mão de quem ele cumprimenta. Idade indefinida. O rosto é mais velho do que o corpo. Marcas da miséria.
Se ele prometer que vai fazer alguma coisa, pode esquecer, porque não vai.. Meus amigos, dele diriam assim: Pô ! cara sinistro!
Não olha ninguém de frente. Quando se captura o olhar dele, no fundo do olho apertadinho, há muita raiva e desconfiança.
Ele me olhou assim quando comprei o terreno, e cumprimentou com a mão mole, depois que dei o sinal. Sinistro ele, muito sinistro!

Diz Miranda que ele tem parte com o diabo.
No condomínio ele separou dez lotes para ele. Tem quase um alqueire mineiro. Cercou tudo com régua de eucalipto. No fundo fez um lago artificial. Caiou de branco as réguas da cerca e os pés das árvores. Soltou lá um cavalo manga-larga inteiro que vive correndo atrás da égua da Mariângela. Um cavalo lindo, calçado, marrom, ou baio, como eles dizem, macho paca! Ou Pedrinho se escanhoa muito bem ou é glabro.

Já Carlinhos é diferente. Veio de uma família abastada, tradicional na cidade. no estado e na história. Herdeiros de Fernão Dias Paes Leme, o caçador de esmeraldas.
Até hoje ele tem pendurado no pescoço, não tira nem para tomar banho, o medalhão de prata portuguêsa que o bandeirante usava. Com o passar do tempo o material, a prata do medalhão, está fininha, quase quebrando. Não se consegue ler a inscrição em latim, que o rodeia. Algumas letras desapareceram. Carlinhos já mandou fazer a quinta argola presa ao medalhão. Quatro delas já quebraram.

A mãe de Carlinhos teve quatro filhos; dois homens e duas mulheres. Todos estudaram. Mas a filha mais preparada, a que era professora de faculdade morreu de repente, com câncer na cabeça, lá nela, e quando foi ver, já era o fim. Não deu pra fazer nada!
Carlinhos é um homem alto, aloirado, os pelos da barba cerrada são louros, misturados com fios brancos. Magro. Dos dentes da boca, só sobrou um punhado em baixo. Na arcada superior há um canino sofrido, comprido e esverdeado. Mas é um homem bonito! Quando bebe fica mais terno que o normal e derrama toda sua carência no colo do interlocutor.
É um homem do passado. Com muita delicadeza, afasta a cadeira da mesa para a mulher sentar. A dos outos que a dele,a Zazá, não cuida.
Ele combina as coisas com Pedrinho, a quem chama de amigo e fica esperando, pelo resto da vida, que o outro cumpra sua parte. Por mais que Zazá o atormente para agir a vida e deixar Pedrinho para lá, ele diz que deu a palavra de homem, e palavra dele não volta atrás!
A família do Carlinhos, antigos ricos, como diz o ditado: “avô rico, filhos remediados, netos pobres.” empobreceu. As terras, mal cuidadas, foram divididas várias vezes entre os herdeiros, ficando cada vez menores. Os herdeiros não tinham dom para trabalhar a terra, como diziam, e não sabiam fazer mais nada. Os encargos trabalhistas com empregados ficavam cada vez mais altos e, por isso, o número de trabalhadores diminuía. Então era menor a produção, menos dinheiro ganhavam menos dava para pagar, mais endividados ficavam e as terras, a cada ano, estavam mais abandonadas ao capoeiral.
Os empréstimos no Banco do Brasil levavam qualquer produção que houvesse ,além de nacos da terra para pagar as dívidas. A venda dos produtos não compensava os gastos. Quando não era a geada, a seca, ou o excesso de chuva acabava com a plantação.
Até que o pai resolveu transformar tudo em pasto para o gado. Depois morreu!
Quando o pai do Carlinhos morreu, a terra foi mais dividida, entre os filhos e a mulher viúva.
E tudo acabou no que está hoje. Carlinhos loteando alguma coisa para fazer dinheiro, dinheiro que nunca chega, porque na aflição ele acaba vendendo por uma tutaméia.
Construiu perto da pedreira o matadouro municipal, onde trabalha de segunda à sexta-feira. O matadouro tem o título de municipal, mas a matança é clandestina, de gado doente, vaca prenhe, pronta para parir, mas que tem mamite, ou alguma outra inflamação, uma tragédia, sei lá. No sábado e no domingo bebe. Como Carlinhos bebe! entorna garrafas e garrafas de pinga e nada de fazer efeito mais. Durante as noites da semana ele bebe também. Mas vinho. Garrafões inteiros, cada noite, de Sangue de Boi.
A pedreira está desativada e, de vez em quando, rola lá de cima uma barreira. Aí Zazá manda o Julio, com uma enxada, limpar a estrada que é toda deles. Só quando o rio da glória enche demais é que não tem jeito. É esperar que as águas baixem para usar a estrada de novo.
Eu sempre pego a estrada do matadouro quando vou para Baependi, ou quando a estrada de cima está enlameada demais.
As carcaças estão sempre lá. Penduradas pelos ganchos nos tubos de metal. Novas carcaças, outras carcaças. Às vezes, paro o carro e as fico vendo vermelhas, os ossos das costelas definidos, a escorrer sua trilha de sangue. E se fossemos nós, penso, gente dependurada? E se fosse futuro e não houvesse mais alimento no planeta e as boiadas de seres humanos estivessem aguardando no curral para serem esquartejadas? É certo que viriam das regiões mais pobres do Brasil. Teriam a carne dura, crestada pela fadiga, ou viriam da África, e de outros países do terceiro e do quarto mundo. Mas não para o matadouro municipal do Carlinhos. Acredito que a carne daqui viria do sertão do norte e nordeste do Brasil e talvez de Pirapora, onde compram o gado bem barato, Teófilo Otoni, Pedras Azuis, sei lá! Será que todos comeríamos desta carne? E se não mais houvessem verduras, nem raízes. O que seria dos vegetarianos e macrobióticos?
Aí me lembro que o futuro é agora. Que não existe alimento para todas as pessoas do planeta. Que a maioria morre de fome e vive se esvaindo de pura inanição. Que a morte por desnutrição é hábito de cada segundo. E com desperdício. As carcaças das crianças mortas ou dos adultos não são aproveitadas para saciar a fome dos que ficam se esvaindo de pura inanição. Por falta de recursos para o enterro algumas são enterradas no fundo dos quintais, onde os predadores se aproveitam dos dejetos, abandonadas aos vermes e aos urubús.
Aí tenho uma recaída do meu medo. Volto para trás, como eles dizem aqui e fico trancado dentro de casa por dias e dias, dias e dias. Até que a emoção esquece, eu esqueço, mas antes juro que nunca mais passarei pelo matadouro. E esqueço também. O fascínio me leva a parar lá de novo e ficar olhando as carcaças escorrendo sangue, recém abatidas.

-Vou te contar uma coisa, me disse Carlinhos. É vérico, como falava meu pai. Durante muitos anos procurei por uma Maria, de l7 anos e virgem. Não dei sorte. O tesouro não era para ser meu. Quando a vontade foi fraquejando, quando a saudade da casa de minha mãe se tornou quase que uma doença, voltei. Vi que já estava na hora de casar. Ter mulher, uma casa e filhos. Meu pai, coitado, já era muito idoso. Aí, com o prestígio dele consegui o cargo de delegado municipal para mim. Naquele tempo podia! Não precisava ser advogado nem ter muito estudo. Fiquei mais de vinte anos no cargo. Quando a lei mudou e tive de sair da polícia, montei o matadouro. E aqui estou. Aqui estamos. Sua doença trouxe você pra cá e ficamos amigos. Você reencarnando o tropeiro Simão. E eu não sei reencarnando quem. Só nos falta agora uma Maria e vontade de cavar o tesouro. Se a gente achar vou comprar uma Cheroquee.
-Não tenho gana de ouro não Carlinhos. Tenho o que quero. Não mais.
-Cada cabeça cada sentença, já dizia meu pai. Eu ainda quero o ouro. Só perdi a gana de cavar! Coragem pra matar eu tenho. Tô no fim da vida. Mal consigo sobreviver com esse governo tomando tudo o que a gente constrói. Eu quero, quero sim, o ouro.

domingo, 5 de abril de 2009

poisé, não é mesmo, XIX


a origem dos macieira juncal



De frente para o Supermercado Inca, no centro mesmo da cidade, fica o Hotel Corumba, que tem o mesmo nome da cidade, na rua Comendador Ramon. Esse hotel, de primeiro, foi a casa que o Antonio Ramon mandou construir para ele e a nova mulher, inaugurando os tempos de riqueza. Mandou trazer de Portugal todo o acabamento da casa. Os azulejos portugueses, dos quais ainda restam alguns na fachada do hotel, as sedas de cama, os linhos da mesa, as porcelanas inglesas também foram primeiro à Portugal, antes de aportar no Brasil.

Para receber toda a carga que importara, Antonio Ramon, que estava para ser feito Comendador, com a comenda comprada ao Rei do Brazil, preparou dois homens de sua inteira confiança. Mulatos os dois, já produtos da miscigenação. Altos, com as pernas muito compridas e finas, quase que as mulas passavam por debaixo deles.
De um, mandou tirar os dois olhos para que ficassem mais apuradas a audição e a fala. Do outro, cortou a língua e furou os tímpanos, para que a visão tivesse mais acuidade  e, contar como os acontecidos?
Um descansava de dia, durante as longas viagens entre as Minas Gerais e o Porto de Estrela, no Rio, para pegar as encomendas, e levá-las intactas a seu dono. Dormia, encurvado sobre a mula, que embalava seu corpo. Era o cego quem dormia assim, Para atilar nas noites em claro, em que era só ouvidos.
O que enxergava ia comboiava a tropa pelos caminhos. Sem fazer muito barulho, evitava lugares difíceis de passar, porque como o patrão disse o cego era mais importante, ele tava com o ouvido tão treinado que podia ouvir qualquer um que chegasse de maldade para roubar a tropa.

Como a casa era uma enormidade, um luxo!, para mais de sessenta quartos, oito cozinhas, vinte e duas salas e, de metro em metro, havia uma porta ou janela para abrir, Antonio Ramon contratou um empregado. Este já veio manco de nascença. para fazer uma só coisa: abrir e fechar  as janelas da casa, todos os dias, fizesse chuva ou sol.

O manco começava de manhã bem cedo o seu serviço. Antes das cinco. Quando havia lua, e ela estava bem alta no céu, ele terminava de fechar a última janela.
As janelas do quarto de sua mulher eram abertas ou não, segundo seu desejo, por uma das dez criadas que a serviam. As dele, do seu quarto, o patrão fazia questão de abrir ele mesmo. Escancarava das janelas a rua de terra batida, vermelha do barro bom de plantar café; metade do ano trazia poeira, na outra metade, lama.

Aos poucos Antonio Ramon e sua nova mulher, de quem ninguém lembra o nome,  povoaram a casa. E, juntamente com a casa , a cidade, de dezenas de Ramons, legítimos e bastardos,  sem conseguir gostar de nenhum deles com o mesmo amor que sentira por sua filha Maria que, agora, guardava sua fortuna.

Nesta época não existia o Supermercado Inca. Para abastecer a dispensa os Ramons tinham suas terrras de plantação e criação. Mas as iguarias mandavam trazer da Europa. Era um ir e vir que não parava nunca. Os bons chás, ervas de cheiro apetitoso, caixas de bacalhau, chocolates, licores e perfumes, bolos e biscoitos, e bebidas, muitas bebidas. Fumo para cachimbo. Charutos . E uma raiva profunda quando piratas abocanhavam a carga, impedindo que esta chegasse.Ainda bem que Antonio Ramon preferia a bagaceira da terra, feita em suas fazendas, que lhe ardia dos gorgomilos aos bagos, quando a tomava de um trago só.

Os mulatos tropeiros de Ramon, um cego e outro mudo e surdo, salvaram por várias vezes, de negros assaltantes, negros fugidos, os tesouros que seu amo mandava vir de Portugal.

O cego chamava-se Simão e o surdo-mudo ficou com o apelido de Quém-quém. Porque, ninguém nunca contou. Dizem que foi sempre assim.
Acontece que Simão e Quém-quém, de tantas idas e vindas ao Rio de Janeiro, tornaram-se conhecidos e gabados por sua honestidade e fidelidade ao amo.

Um dia, chovia como se fosse acontecer a enchente das goiabas. Um jovem bem posto, acompanhado por um séquito de serviçais, montado num cavalo de dar inveja de bonito e tão bem ornamentado, abria ala para uma carruagem bem acolchoada onde estava uma senhora, que por semelhança parecia sua mãe, e algumas mucamas. Ele, homem desabrido, aproximou-se daquele casarão e olhou. Olhou muito, avaliou. Em seguida rumou para a melhor hospedaria da cidade, onde acomodou a senhora e providenciou pouso para a criadagem e os animais da tropa. Era o conde de Macieira e Juncado, o jovem rapaz, que viera trazer ares metropolitanos à pequena cidade do interior! Corumba modernizava-se!

Ao saber da estada do nobre na cidade, Antonio que não gostara inicialmente da chegada dos intrusos, mandou sua mulher ataviar as filhas mais velhas, Mariela, Maristela, Marivalda e Marilda. Ordenou  um baile de gala para homenagear os visitantes.
E foi neste baile que Marilda encontrou seu esposo, com quem deu início à linhagem dos Ramon Macieiera Juncal.
Ao casar com o conde Reinaldo, Marilda formou a família mais fecunda de todo o Brasil e do sul de Minas Gerais. Em cada cartório, banca de advogado, escritório de engenharia, em cada comércio bem sucedido, no ramo imobiliário, enfim, em todas as atividades existentes há um Macieira aaJuncal. Criaram e fundaram várias cidades famosas. Se espalharam por São Paulo e Rio de Janeiro.
E desta última cidade, alguns séculos mais tarde, retornou para morar em Corumba, a Renida, que comprou o lote do Carlinhos.
Ela recebeu este nome em homenagem aos antepassados distantes, Reinaldo e Marilda.
Renida, a neta solitária, que perambula hoje pela cidade, desprezando os mineiros, e botando contra cada um que esbarra de mal jeito em seu caminho, uma pendenga na justiça. Dizendo em alto e bom som, que não precisa de ninguém, não quer a companhia de quem quer que seja, pois odeia gente.

Mas isto é outra história. Por enquanto vamos ver o que faz o Carlinhos.



quarta-feira, 1 de abril de 2009



De frente ao Supermercado Inca, no centro da cidade, fica o Hotel Corumba, que recebeu o mesmo nome da cidade nos antigamentes dela, quando nem havia sido imaginada, na rua Comendador Ramon. Esse hotel, de primeiro, foi a casa que o Antonio Ramon mandou construir para ele e a nova mulher, inaugurando os tempos de riqueza. Mandou trazer de Portugal todo o acabamento da casa. Os azulejos portugueses, dos quais ainda restam alguns na fachada do hotel, as sedas de cama, os linhos da mesa, as porcelanas inglesas também foram primeiro à Portugal, antes de aportar no Brasil.
Para receber toda a carga que importara, Antonio Ramon, que estava para ser feito Comendador, com a comenda comprada ao Rei do Brazil, preparou dois homens de sua inteira confiança. Mulatos os dois, já produtos da miscigenação. Altos, com as pernas muito compridas e finas, quase que as mulas passavam por debaixo deles. De um, mandou tirar os dois olhos para que ficassem mais apuradas a audição e a fala. Do outro, cortou a língua e furou os tímpanos, para que a visão tivesse mais acuidade. Um dormia de dia, durante as longas viagens entre as Minas Gerais e o Porto de Estrela, no Rio, para pegar as encomendas, e levá-las intactas a seu dono. Dormia, encurvado sobre a mula, que embalava seu corpo. Era o cego quem dormia assim, Para descansar das noites em claro, em que era só ouvidos. Enquanto o que enxergava ia comboiando a tropa pelos caminhos. Sem fazer muito barulho, evitando lugares difíceis de passar, porque como o patrão disse o cego era mais importante, ele tava com o ouvido tão treinado que podia ouvir qualquer um que chegasse de maldade para roubar a tropa. Como a casa era uma enormidade, um luxo!, para mais de sessenta quartos, oito cozinhas, vinte e duas salas e, de metro em metro, na casa inteira tinha uma porta ou janela para abrir. Antonio Ramon contratou um empregado. Este já veio manco de nascença. para fazer uma só coisa: abrir e fechar todas as janelas da casa, todos os dias, fizesse chuva ou sol. O manco começava de manhã bem cedo o seu serviço. Antes das cinco. E quando havia lua, e ela já estava bem alta no céu, ele terminava de fechar a última janela. As janelas do quarto de sua mulher eram abertas ou não, segundo seu desejo, por um dos 10 criados que a serviam. As dele, do seu quarto, o patrão fazia questão de abrir ele mesmo. Escancarava as janelas que davam para a rua de terra batida, rua vermelha do barro bom de plantar café, metade do ano trazia poeira, na outra metade, lama. Aos poucos Antonio Ramon e sua nova mulher, de quem ninguém lembra o nome, foram povoando a casa. E, juntamente com sua casa foi povoando a cidade de dezenas de Ramons, legítimos e bastardos. E sem conseguir gostar de nenhum deles com o mesmo amor que sentira por sua filha Maria que, agora, guardava sua fortuna. Nesta época não existia o Supermercado Inca. Para abastecer a dispensa os Ramons tinham suas terrras de plantação e criação. Mas as iguarias tinham de mandar trazer da Europa. Era um ir e vir que não parava nunca. Os bons chás, ervas de cheiro apetitoso, caixas de bacalhau, chocolates, licores e perfumes, bolos e biscoitos, e bebidas, muitas bebidas. Fumo para cachimbo. Charutos . E uma raiva profunda quando piratas abocanhavam a carga, impedindo que esta chegasse. Ainda bem que Antonio Ramon preferia a bagaceira da terra, feita em suas fazendas, que lhe ardia dos gorgomilos aos bagos, quando a tomava de um trago só. Os mulatos tropeiros de Ramon, um cego e outro mudo e surdo, salvaram por várias vezes, de negros assaltantes, negros fugidos, os tesouros que seu amo mandava vir de Portugal. O cego chamava-se Simão e o surdo-mudo ficou com o apelido de Quém-quém. Porque ninguém nunca contou. Dizem que foi sempre assim. Acontece que Simão e Quém-quém, de tantas idas e vindas ao Rio de Janeiro, tornaram-se conhecidos e gabados por sua honestidade e fidelidade ao amo. Um dia, chovia como se fosse acontecer a enchente das goiabas. Um jovem bem posto, acompanhado por um séquito de serviçais, montado num cavalo de dar inveja de bonito e tão bem ornamentado, abria ala para uma carruagem bem acolchoada onde estava uma senhora, que por semelhança parecia sua mãe, e algumas mucamas. Ele, homem desabrido, aproximou-se daquele casarão e ficou olhando. Olhando muito, avaliando. Em seguida rumou para a melhor hospedaria da cidade, onde acomodou a senhora e providenciou pouso para a criadagem e os animais da tropa. Era o conde de Maciel e Juncado, o jovem rapaz, que viera trazer ares metropolitanos à pequena cidade do interior! Corumba modernizava-se! Ao saber da estada do nobre na cidade, Antonio que não gostara inicialmente da chegada dos intrusos, mandou sua mulher ataviar as filhas mais velhas, Mariela, Maristela, Marivalda e Marilda. E mandou que fosse feito um baile de gala para homenagear os visitantes. E foi neste baile que Marilda encontrou seu esposo, com quem deu início à linhagem dos Ramon Maciel Juncal. Ao casar com o conde Reinaldo, Marilda formou a família mais fecunda de todo o Brasil e do sul de Minas Gerais. Em cada cartório, banca de advogado, escritório de engenharia, em cada comércio bem sucedido, no ramo imobiliário, enfim, em todas as atividades existentes há um Maciel Juncal. Criaram e fundaram várias cidades famosas. Se espalharam por São Paulo e Rio de Janeiro. E desta última cidade, alguns séculos mais tarde, retornou para morar em Corumba, a Renida, que comprou o lote do Carlinhos. Ela recebeu este nome em homenagem aos antepassados distantes, Reinaldo e Marilda. Renida, a neta solitária, que perambula hoje pela cidade, desprezando os mineiros, e botando contra cada um que esbarra de mal jeito em seu caminho, uma pendenga na justiça. Dizendo em alto e bom som, que não precisa de ninguém, não quer a companhia de quem quer que seja, pois odeia gente. Mas isto é outra história. Por enquanto vamos ver o que faz o Carlinhos.

terça-feira, 31 de março de 2009

pois é, não é mesmo? VIII

aneurisma


Mas deixa eu voltar à vaca-fria com Carlinhos contando as coisas:


Depois disso pedi benção a meu pai e fui pesquisar nos museus, nos livros, toda a história desse tesouro.
Meu pai sempre disse que numa cidade estranha, e na minha também, eu devia procurar pelos mais velhos pra me informar. Porque eles tinham o segredo. E assim , pela vida, fiz.
Passei grande parte da minha mocidade ouvindo os mais velhos. E todos contavam essa mesma história do tesouro.
Estudei a biografia da Bárbara Heliodora todinha. Ela era quase uma rainha! Mandava em alguns lugares mais do que o rei!
Fui até Conceição dos Ouros e vi muito homem bateando mais de cem gramas de ouro por dia. Até que me vi sozinho. Só eu procurava pelo tesouro. Ninguém mais se interessava por ele. Não vinha mais ninguém cavar buracos, depois daquele vento. Todos esqueceram, ou morreram de medo. Então pensei, tá na minha hora de casar. E casei. Tive os filhos. Tenho os netos. Mas o tesouro não desgrudou de mim.
Tive lá em Conceição do Rio Verde com a Leila Alkimim, que sempre confirmou que o tesouro tava por aqui.
Seu Jonga ainda está vivo até hoje e jura que existe o tesouro. São patacas e patacas de ouro, enterradas em potes de barro, destes com duas alças, muito grandes, com um lajedo em cima.
Todos dizem que o tesouro existe, mas ninguém mais se interessa por ele, além de mim. Pensei que meus filhos pudessem seguir na busca, mas nenhum se interessou.

No ano passado esteve aqui um judeu muito rico chamado Zimermman. Ele também tinha ouvido falar do tesouro e mostrou um papel dizendo do direito dele, adquirido no subsolo de Minas Gerais, para explorar todo tido de minério, assim como o Eike Batista, que é dono de todas as águas do subsolo daqui. O pai dele, dizem, quando era Presidente da Vale do Rio Doce, tirou direito no nome do Eike o direito.

O tal do Zimermman trouxe tudo que é equipamento. Botou o contador geiger para funcionar lá no lugar que seu Jonga mostrou, onde o Eduardo passou máquina pra construir a casa dele. O que eu te conto vai ser uma loucura, porque lá tem alma gemendo que é uma coisa. O contador ficou doidinho. Não parava de estralejar. Foi uma coisa arrepiante. O Zimermman andava pra cá e pra lá com o contador querendo saltar!
Depois os tal do judeu sumiu. E, até, hoje, nunca mais ouvi falar dele.
Você também não concorda que é loucura do Eduardo? Eu até me pergunto como você teve coragem de construir lá do lado e ficar morando lá. Nenhuma alma te assusta não? -Ele me perguntou ao lado do fogão de lenha da casa dele onde a mulher preparava bolinho de chuva.

Neste meio tempo o Antunes morreu. Eram três horas da madrugada do primeiro dia de janeiro de l997, quando o Carlinhos começou a falar do tal judeu. O resto da história ficara para o dia seguinte, ou melhor, algumas horas depois, porque dia seguinte já era.
Mas a cachaça já atordoava as lembranças do Carlinhos. Ele disse que era sono. E foi dormir.
De manhã, lá pelas nove horas, assim contou Zazá, Pedrinho esteve no Matadouro e ficou conversando até perto das onze , quando Carlinhos veio pra casa almoçar. Lá no canto dele. Que ele se acha muito bom pra sentar na mesa com a gente e comer junto.
Aí o Leandro – que é o neto da Zazá- levou um tombo e bateu com a cabeça no chão. Ninguém almoçou com tanta preocupação. Carlinhos voltou para o matadouro municipal, do qual é dono.
Uma vez ele me chamou para mostrar como matavam e esquartejavam os animais. Vacas com mamite, magras, touros bravos, ou já derreados no chão.
Antes de chegarmos às mesas de madeira e concreto, onde ficavam os animais para serem abertos, passamos por corredores de carcaças ensangüentadas, penduradas por grossos ganchos de ferro, em tubos também de ferro, enferrujado, como se fosse um closet de roupas só vermelhas, que ainda pingavam o corante com que haviam sido tingidas. Imensos fraques, de uma aba só, ou imensas asas, mutiladas, que não podiam voar.

Num canto do matadouro estavam jogados fetos de bezerros de todas as idades, alguns ainda vivos, quase nascidos, amontoados uns sobre os outros, esperando virar lingüiça.
Alguns dizem que comer carne de vaca prenha dá dor de barriga, explicou o Carlinhos. Dá nada! O povo só fala ignorância! Eu mesmo já fiz muito churrasco com carne de vaca prenhe e nada senti!
Zazá ligou para casa de um médico amigo, e foi na casa dele levando o neto, ver se tinha acontecido alguma coisa com a cabeça do Leandro, por causa do tombo.
Aí ela ficou sabendo da morte do Antunes. Aneurisma!

Ele levantou às nove horas e pediu um remédio para a mulher, que estava com dor de cabeça. Aí a Dorinha foi pegar. Aí ele vomitou. Mandou ela chamar um médico porque estava tonto também. Enquanto ela limpava o vomitado o Antunes deitou na cama.
Ela ligou pra filha que é casada com o dr. Nilo, bom médico. Aí a filha falou, que nada mãe, é ressaca, o pai bebeu muito ontem! Passa o telefone pra ele. Aí Dorinha passou o telefone. Mas cadê o Antunes? Ele está desmaiado, filha! Que nada mãe, deixa ele dormir! Filha, chama o Nilo que o Antunes está mal. Fica tranqüila mãe, o Nilo vai tomar o café da manhã e nós já vamos. Mas o papai tá só dormindo. É só uma baita ressaca.

E não é , repetia Zazá, que o Antunes estava mesmo morto? Você sabe como é cidade do interior, não é? Quando eles chegaram era na hora do almoço. Dorinha tava desesperada de tanto chorar e sacudir o Antunes. E o Antunes morto!
Agora, imagina aquela mulher sacudindo o corpão daquele homem! E cadê que ele cabia no caixão? não tinha um caixão que coubesse nele! Então o jeito foi ir de ambulância, sem caixão mesmo, para São Paulo. Oia só! Ele quis ser cremado! E foi sozinho, nessa viagem inteira, o corpo dele na ambulância, e o ajudante. Ninguém da família.
O corpo saiu daqui às dez horas da noite. E cadê que ela deixava levar o Antunes? Se agarrava nele, dizendo que ele ia viver de novo... àquele corpão pesado do Antunes, mais a Dorinha pendurada nele! Até que o Dr. Nilo deu uma injeção que apagou ela. Lá foi então o Antunes sozinho pela Dutra, sem ninguém da família com ele.

A Dorinha ia pra São Paulo no dia seguinte assinar a papelada e trazer as cinzas. Ela vai jogar o que sobrar dele no rio. Mas que rio? O Rio verde, ou o Rio de Janeiro? Não sei! A Dorinha não explica. Ele só disse que quer ser jogado no rio. Foi o que a Dorinha falou! E agora, já pensou no que vai ser da imobiliária? A Dorinha diz que volta pro Rio, que não quer saber de nada! O Antunes tinha muitas dívidas, é o que o povo diz! Bem, vamos ver, não é? Deus sempre escreve certo por linhas tortas.

A Miranda, cujo marido é caseiro do Pedrinho, disse que ele vai ficar com a Imobiliária. Eu não disse que o Pedrinho tem trato com o cujo? E o senhor não acredita. Faz tempo que ele queria que queria montar uma imobiliária junto com a loja de automóvel dele, não é? Agora não precisa montar. Já tem. Os negócios dele, do loteamento tão lá mesmo, não é? Lá com seu Antunes. O cujo levou uma bezerra dele no natal, a melhor. No ano novo deu de presente uma imobiliária. Pode? Tem coisa aí, não tem?



sexta-feira, 27 de março de 2009

pois é, não é mesmo, VII

a história de maria


De volta ao século XX, Carlinhos, quando completou 18 anos, resolveu perguntar ao pai sobre àquilo que tanto preocupava sua juventude.
Por que lá, onde houvera o jatobá, árvore sozinha no pasto devorada pelo bichos e ruira, porque em toda àquela região sempre aparecia, da noite para o dia, um buraco grande? No dia seguinte aparecia outro e mais outro e mais outro. Depois ficava um tempo sem aparecer buracos. Depois lá vinham eles de novo, como se surgissem da terra, como se a terra cedesse naquele lugar. Será que havia algum túnel lá por baixo e ,de vez em quando, a terra desmoronava? Vai brincar, menino, não venha com histórias de buracos que não existem! Existem sim, pai. É só o senhor vir comigo que vai ver! Levanta dessa cadeira e vamos ver! Não vá mais para aqueles lados que você não vê buraco algum. Isto é uma ordem! Mas pai!... Nada de mais nem menos mais. É uma ordem.

Maria, moça bonita, já com dezessete anos, de prendas e formosura comentadas por todos os rincões d’el rey, conheceu naquela ocasião, no empório do pai, um moço recadeiro, sem importância, que vivia de avisar o patrão de partidas de tesouros.
O moço, o Jequiá, aparecia e desaparecia assim, sem mais nem menos, mas ela via que ele olhava para ela enquanto estivesse por lá, esperando o pai.
O coração de Maria estralejou nas veias. Não tinha ninguém para lhe explicar o que era àquela doença de batedeira do coração. Mas no fundo dela ela sabia. Era ver o moço e o coração desesperava por aí. Era não ver e desesperava pior.
Antonio Ramon, que estava viúvo há bastante tempo, mas, como bem dizia, não estava morto, reparou nos rubores e nas vergonhas de Maria. E ficou prestando atenção. Até descobrir que sua filha estava entusiasmada pelo novo empregado.
Nunca que sua filha, agora moça de dote, bem que virgem não era mais, mas o dinheiro, como dizia, cobria qualquer coisa, nunca que sua filha ia casar com serviçal. Sonhava senhores fidalgos para enriquecer com um nome digno e famoso , de respeito, suas posses.
Despediu Jequiá. Correu com ele vida afora. Ameaçou!
Maria entristeceu. Desta vez, não estava de acordo com o pai. O amor já muito andara entre os dois, tinha engordado, estava prenhe de vontades suspiradas. E, todas as tardes, Jequiá vinha ciscar por perto do empório para ver Maria.
Antonio Ramon não conversou. Matou Jequiá e serviu-o aos porcos.
Não tendo mais seu amor por volta, Maria perdeu o viço, a beleza. Uma raiva comprida, fininha, furava ela fazendo o sangue vazar por todos os buracos de dentro no corpo, nos rincões mais escondidos, nas covas fundas do fígado. Procurou no chiqueiro e achou restos de ossos. Sabia que eram de Jequiá. Pegou um pedaço e guardou junto ao coração, encostado no seio, por dentro da roupa.
Os olhos queriam matar o pai, mas velados cobriam-se de medo e olhavam para o chão. Ficou com o corpo mais osso do que carne, encurvou a espinha e enfeiou.
A beleza do Rio da Glória, tão cantada pelos caminhos, murchou devagarinho. Mas, secamente, murchou.
A nova danou a correr estrada, varar curral, entrar na mina mais funda, escavar o chão, ressoar nas matas, roncar no tambor dos pretos e ribombar contra a Serra da Mantiqueira. Maria estava morrendo de dar dó!
E quem mais queria se servir de Maria? Ninguém. De vez em quando um, responsável pelo comboio, presenteava ela a um negro. Todos iam ainda para ver Maria definhando, sumindo, encolhendo, como alguma coisa que já tinha sido colhida.
E a fama do pouso do Rio da Glória foi mudando.
Corria a história de um lugar visitado pelo cujo que, vez em quando, sumia com uma tropa inteira, sem deixar vestígio de nada. Nem um osso para contar a história! E,ainda por cima, o mesmo cujo estava levando a vida da filha do patrão. Moça tão prendada, tão bonita como Maria, nunca que ninguém tinha visto. E virou uma morta viva!

No século XX, Carlinhos, aos 18 anos, começou a perturbar o pai para saber a origem dos buracos. A terra é da gente, pai! , dizia. Ninguém pode ficar cavando assim!
Você se lembra daquele um pé de jatobá que ficava no meio do pasto? Bem, já que você insiste, te conto. É fato vérico! Pois não é que um nosso antepassado alugou um pedaço daquele caminho perto do rio para um velhaco de nome Antonio Ramon, português recém-chegado, sem eira nem beira... Pois é. Por lá ele constuiu um empório. Bem na beira daquele caminho de passagem dos tropeiros. Eles chegavam de todas as partes do estado, carregados de ouro e pedras preciosas.
Que ninguém nos escuite. Mas dizem que ele matava com as próprias mãos os ditos cujos, os que levavam os tesouros, enterrava os corpos na areia do rio, e ficava com a fortuna.
A dinheirama ele guardava dentro de uns potes de barro, contam que cabia um homem em pé dentro deles, e metia em baixo do pé de jatobá. Em cima dos potes, ele armou um lajedo de pedra e, cobriu tudo com terra e folhas pra despistar. E isso meu filho, é fato vérico! É o que diz a história. Mas que por sua boca ninguém venha a saber o nome do gajo!
Diz a história que deste Antonio Ramon, dono do posto, é que veio a família do Comendador Ramon, que hoje é nome daquele rua que você sabe! E você sabe mesmo como é o povo dos Ramon! Pensam que têm o rei na barriga até hoje!
O velho Ramon fez a fortuna da família assim, como contam, mas andam como se fossem os reis de Portugal, mesmo depois que o dinheiro se foi.
A mulher do tal Antonio morreu de parto e deixou uma filha, e dizem que ele cuidou muito bem dela. Pelo menos isso! Mas a filha morreu também, muito nova.
Ele casou de segundas núpcias com uma da terra. Acabou com o posto, vendeu pra outro, e comprou terras e mais terras, onde hoje é a cidade.
Ele planejou tudo direitinho, e deve de ter influenciado os homens que vieram de fora para construir isto tudo que você vê aqui.
-Ninguém veio fazer a cidade, pai!
-Vieram sim. Que eu vi!. Há quase cem anos atrás.
-Pai, vamos cavar estas terras e achar nós o tesouro dos Ramon!.
-Eu já cavei muito. Tô derreado. Te dou um conselho: junta uns
trabalhadores de confiança e cava com eles.
-Eu lembro do pé de jatobá, mas não tenho mais a mínima idéia de onde ele estava plantado. Sei que é pros lados daquelas terrras que o senhor fala em vender.
-Tem um velho que sabe exatinho a direção dele. É seu Jonga, lá do Bosque.
-Mas seu Jonga, pai? logo ele?
Fui atrás de seu Jonga que me disse isso vai sair muito caro.
Seu Jonga é um feiticeiro dos bão! Vive até hoje, com mais de cem anos. Mas fala o que a gente não entende. Deu câncer lá nas cordas vocais dele, operou e ficou com a voz assim.
Ele disse que era para eu tratar dez homens de minha confiança, para cavarmos o buraco. O lugar exato ele dizia onde, na hora certa, e quando achasse a coisa ele resolvia tudo.
Reuni todos os homens e combinei: cinqüenta por cento do achado ficava com a família dos mortos. Os outros cinqüenta a gente dividia entre nós.
Os homens levaram mais de um mês cavando no lugar onde seu Jonga apontou. Eu hoje não lembro mais onde foi. Ele mediu no passo, para lá e para cá, e mandou cavar em roda.
Chovia, a gente parava. E como chovia! A gente armou tenda em volta do lugar que seu Jonga marcou, e ficamos de guarda. Mais de mês! Mamãe era uma que vinha muitas vezes trazer comida e pinga da boa. No mais era a água do Rio da Glória, que o governo já tinha represado para levar para a cidade, que a gente bebia e usava no banho.
A chuva não parava! Mas a gente não desistia. Tava perto da enchente das goiabas, quando ia parar de chover de vez. Durante a enchente o rio ocupava toda a várzea, exatamente onde estava o buraco! Por isso a gente tinha de ir mais depressa, indo contra as águas.
As enxadas, enxadões, chibancas, ficavam pesadas da lama que grudava nelas. A gente continuava.
Até que uma noite seu Jonga reuniu nós e falou, é amanhã, viu moçada? Amanhã vossemeces ficam ricos!
Dia seguinte. No final da tarde, sem uma nuvem no céu, sem um pingo de chuva, as enxadas começaram a bater na pedra. Era o tal lajedo. Apertamos mais a cavação e logo a pedra tava toda de fora. Seu Jonga mandou todo mundo se afastar. Foi pra cima da pedra, desenhou lá seus desenhos, botou o punhal no meio deles e falou com uma voz estranha, que não era igual a dele. Tem um porém, dizia, tem um porém. O mardito Antonio Ramon, matou a filha e botou ela pra tomar conta do tesouro. Ela tá falando comigo. Diz que daqui ninguém nada leva! A não ser por troca. O Carlinhos não pode, tá com mais de dezoito anos. Só pode quem tem, dezessete, que era a idade da finada. Com menos também pode! Então vossemeces decidem. Quem vai ficar aqui no lugar da finada. Alguém tem que dar seu sangue!
Só eu tinha dezoito anos. Seu Jonga nem contar, era muito velho. Dos outros dez tinha alguns com dezessete, outros com menos. Todos podiam. Só que era de escolha. E ninguém ali tava querendo morrer!
De repente começou a soprar um vento, vindo de tudo que era lado, e na verdade, de lado nenhum. Botou a gente cego da areia do rio, ameaçava fazer a gente voar!
Saíram todos correndo. Eu fui por último, era o mais velho e o chefe de todos. Seu Jonga, coitado, esse nem contar! Quando cheguei naquele mata-burro, que você atravessa todo dia, quando entra e sai do condomínio, estava encharcado. E nem uma gota de água tinha caído do céu. Parei no mata-burro para respirar. Nem sinal dos outroa ou do vento, que tinha passado. Duzentos metros depois, já em casa, minha roupa tava sequinha.
Contei o acontecido pro meu pai. Ele confirmou que diziam que o Antonio Ramon tinha matado a filha e botado ela pra tomar conta do tesouro. Mais tarde, nas minhas pesquisa, confirmei tudo. Vendo que a filha ia morrer mesmo, o português levou Maria para a beira do buraco. Levantou o lajedo, deu uma porretada na cabeça dela e falou: agora desgraçada toma conta do que é do seu pai, em vez de querer dividir com quem tem menos.
Seu Jonga errou num ponto. Só consegue levar o tesouro quem trocar Maria por Maria. Tem que matar lá no lugar uma Maria de 17 anos e virgem, pra purificar os pecados da outra.
No dia seguinte voltamos no lugar para ver o buraco. Tinha sumido tudo. Não tinha a menor marca de buraco no chão. Seu Jonga avisou pra ninguém cavar mais porque estava tudo interditado. No mesmo dia começou a enchente das goiabas.


Eu ainda vejo, como se um dia tivesse visto, os tropeiros comboiando a tropa debaixo de chuva, as abas dos chapéus desabados pela água, os impermeáveis pretos brilhando e as mulas socavando as margens do rio, com dificuldade em levantar as patas afundadas na areia encharcada, e os homens curvados sobre os animais, protegendo o rosto da fustigação do vento. Vejo lá longe os morros cobertos por nuvens de neblina que deixavam ver um pedaço ou outro da mata. Escuto o aboiar do patrão da tropa forçando a marcha . Eu vejo tudo isso como se um dia tivesse visto mesmo. Vai ver já fui um tropeiro e reencarnei, como diz o Carlinhos. Ou então vi essas coisas em filmes sobre o faroeste norte americano! Devia ser tudo igual...

quarta-feira, 25 de março de 2009

pois é, não é mesmo? VI


turmalinas





Enquanto isto Fernão Dias procurava as pedras nos rios, nas rochas, nas margens arenosas, ou cheias de lama e, impaciente, escavava as terras com os dedos, procurando os veios verdes das esmeraldas.

          As unhas apodreceram e caíram, os dedos gangrenavam e Fernão se arrastando pelo curso dos rios enlouquecia, supondo ver em cada pedra, esmeralda. Morreu desesperado. 

      A barba longa, os cabelos desgrenhados, mal alimentado, como numa fotografia. Na margem de um dos rios que conhecia de cor, de tanto percorrê-los a todos. Morreu de pura exaustão. E seus herdeiros foram recebendo as terras que dividiam entre si e entre a grande prole que cada um deles havia gerado.

          Até Antonio Ramon alugar um pedaço do pasto, que ficava no caminho dos tropeiros, para montar  um empório, a família só vivia da criação de gado , de porcos e de algum café que restou dos pés que morriam tomados por praga, depois que os escravos foram libertados e não havia quem cuidasse deles.

           Ramon recebia os tropeiros, alojava seus animais, dava-lhes comida, camas macias para dormir, vendia-lhes com o preço mais barato que havia, desde Campanha até Estrela,  todo o produto de que precisavam até chegar ao próximo empório, e ainda brindava o   capataz da tropa  com os  favores  de Maria, que deixava a adolescência com corpo de mulher adulta.

          A fama do empório do Rio da Glória cresceu rápida. Maria era cantada em prosa e verso pelo caminho dos tropeiros. Que avisassem com antecedência do próximo retorno para que Maria estivesse sempre disponível.

          Depois da abolição da escravatura as tropas começaram a diminuir de tamanho. Os animais vinham em igual quantidade, carregados de ouro e pedras preciosas, mas os homens que os conduziam, contando com o chefe, eram em três ou até dois. Os lucros do empório diminuíram. Eram menos bocas a alimentar. Menos suprimentos para vender.

           Antonio começou então a execução de um plano que acalentava há muitos anos. Os tropeiros apeavam de seus cavalos, matavam a sede e a fome e, enquanto o patrão da tropa se servia dos favores de Maria todos podiam beber à vontade, da boa pinga feita pelo dono do empório.

          Então foram mortos os primeiros. Quando estavam todos ferrados no sono da bebida, o português acertava uma única e eficiente paulada na cabeça deles.

          Havia um mangueiral para criação de porcos perto do Rio da Gloria, de modo que as fezes dos animais fossem direto para o rio, dando menos trabalho para  limpar os chiqueiros.

          O dono do empório, com um cutelo afiado cortava em pedaços os corpos dos que ia matando e os servia aos porcos, que devoravam as carnes e os ossos com voracidade, de modo a nada sobrar. 

Os cavalos da tropa, ele os prendia num curral e, mais tarde,  negociava alegando que podia vender barato porque barato os comprara dos tropeiros. Animais cansados, magros, estropiados, que ele recuperava e vendia para aumentar a fortuna. Com o melhor, o que na realidade pretendia, o ouro, as pedras preciosas, ele fazia embrulhos e os enterrava em torno da copa do pé de jatobá.

           Assim o tempo foi passando e Antonio Ramon enriquecendo.

            A coroa vendo que as tropas vindas com o quinto escasseavam, aumentou a cobrança do imposto e fez a derrama, enviando ouvidores-mór para acompanhar de perto o problema e encontrar soluções.

     Uma jovem culta, o que era impensado na época, pois as famílias preparavam suas filhas para as prendas do matrimônio, iniciou a se preocupar e comentar com os mais próximos o absurdo que era Portugal cobrar o quinto de cada família produtiva da terra. Ela era a Bárbara Heliodora, a Barbra Heliodora!


E era assim que Carlinhos Contava esta história. De uma talagada só. Do mesmo modo que a repito.

     A Corte Portuguesa desembarcou na cidade do Rio de Janeiro em março de 1808.

      Mas, diz Thalita Casadei ,que a Vila de Campanha da Princesa já sabia que isto iria acontecer desde fevereiro . E os maiores da vila, presto, enviaram documento à Rainha D. Maria I, à sua Real Família e cortesões em que dizia estarem prontos a “prostar-se aos pés de Vossa Alteza Real e render a sua profunda obediência e Vassalagem, oferecendo todos com muito gosto prontas as suas vidas e fortunas para tudo quanto for do Real Agrado e Serviço de Vossa Alteza Real. Vila da Campanha Princesa, 7 de fevereiro de 1808.”


          Anteriormente foi feita e aceita a doação da Terça parte das rendas da Vila para a Princesa Dona Carlota Joaquina. Foram enviados também animais os mais variados para transporte, trabalho e alimentação da Corte.

           E todas as tropas passavam pelo pouso da Quaresma , onde houve despesas com milho, algodão para embornais, farinha e arroz; pelo pouso dos Criminosos onde se gastou com milho, farinha e fumo para curar bicheiras. Seguiam esse caminho, chegando a terras paulistanas e daí rumavam para o Estado do Rio.

     Como conta Carlinhos eles passavam também pelo Pouso dos Penha onde os gastos,por causa de Maria, nunca foram anotados. Vamos ficar com a versão dele, que não é historiador, mas conhece em profundidade todas as histórias daqui.




segunda-feira, 23 de março de 2009

pois é, não é mesmo? V



voz de pum



Joãozinho era um menino sem palavras. Ele não dizia nada. A palavra ainda não nascera para ele. Nem para dizer, nem para ouvir. Então seus olhos ficavam parados em algum ponto fixo, ou rolavam nas órbitas vigiando a paisagem. Diziam os médicos que era só ele querer que falava e que a surdez não existia. Fizeram de um tudo para ele falar. Depois esqueceram. Havia muita gente para tratar e que podia pagar pelo tratamento. Joãozinho vinha pelo SUS. Havia que esperar.

Quando dona Joana falava, ele fincava os olhos nela como se entendesse tudo e gostasse do que ouvia. Alguns diziam que ele não falava por respeito à fala. Dona Joana dizia que ele admirava tanto o som que tinha complexo de inferioridade. Não se achava digno de fazer barulho. Por isto, a cada pum barulhento, ele escondia o rosto e chorava, ou melhor, as lágrimas escorriam dos olhos que ele arregalava com horror.

Vem cá menino, disse dona Joana. Ele foi. Parou de perna juntinha, braços colados no corpo, virou a cabeça para cima e abriu a boca. Foi o suficiente para sair um pum. Prolongado, gemido, fedorento. Ele gemia de soçobrar, virava curva, e morria devagar. Um pum que morria de suspiro.

 

Joãozinho estava com a cara toda molhada de lágrimas. Vermelha de vergonha. Dona Joana nem perdeu tempo. Deu logo o veredicto. Está na hora deste menino falar. Ele quer dizer alguma coisa e  como não sai a voz por cima, pela boca, faz caminho inverso, sai por baixo. E a voz dele está triste, desesperada, repara como soluça. Todos ficaram aguardando o próximo pum. Demorou mas veio, gemido, solavancado, fedido.

Você precisa falar, meu filho. Falou dona Joana com a mão no queixo dele. A cara molhada, nariz cheio de ranho, olhava para o chão e com o pé descalço rabiscava ondinhas na poeira vermelha da terra.

Fale palavras simples, meu filho. Como pão. Leite. Pai. Mãe. O menino sacudiu a cabeça. Peidou um som cavo e fedorento. Assim não dá menino, falou dona Joana com a barra da saia tampando o nariz. Fala ba, pediu depois que o fedor diminuiu. Fala te, insistiu e explicou: você vê isto aqui, menino, sacudiu as próprias orelhas? Cada orelha ouve um som.

-Ele está discriminando os sons. Berrou Renida da varanda da casa dela.

_ O que você falou?

_ Quem não fala discrimina a palavra. Se acha melhor do que quem fala. É o que  este pestinha faz! Ele se põe melhor do que um bispo. Crente que nem ele só.

O menino chorava cada vez mais.

Dona Gesy implorou: fala para tampar a boca dela, Joãozinho, fala! Você prendeu a palavra dentro de você e isto é egoísmo. Olha em volta de você e me conta como você chama cada coisa que sem ter nome, sem ser chamada por uma pessoa que seja não existe. Você não quer ter amizade com o rio, o cavalo, as nuvens, olha o sol como pinica na pele! Eles não existem em você Joãozinho. Parece que uma criança de colégio passou borracha neles. Você acha justo matar? É o que você está fazendo.

O pai passou a mão na cabeça do filho e

Olhou preocupado para dona Joana.

A senhora ta dizendo pra criança que ela é assassina. Ela é seu Lico. O rio da glória existe se o senhor falar o nome dele. Se não, não.

O pai pegou o filho pela mão e foi arrastando ele pela estrada. Cada pum mais alto do que o outro, e o fedor parecia mais forte. Mas o pai o protegia do mal que dona Joana rogava para ele.

Não dou a virada da curva para o menino falar, disse ela para dona Gesy.

A curva foi chegando. Eles passaram por ela e sumiram da vista das duas.

 

Seu Amarildo passou num trote pequeno no cavalo do Pedrinho. Deu boas tardes e falou que o sol tava pinicando a pele. Ofereceu umas bananas para dona Gesy , botou o chapéu na cabeça e deixou todo mundo com deus.

 

Nisto o menino voltou correndo, passou a curva, tropeçou e , caído no chão gritou, vai pra puta que pariu dona Joana. A Senhora pensa que me engana? Não matei nada não! Olha o rio vivo, olha o sol sua malvada.

 

Dona Joana riu para dona Gesy que convidou, entra pra dentro mulher, vem tomar uma água gelada. Que susto o Joãozinho levou. Bem feito para ele. E pensar que deixou todo mundo desesperado. Tomara que esteja curado do pum.

 

Foi a partir deste dia que Joãozinho ficou conhecido como voz de pum. Ele estudou, se fez doutor advogado, mas ninguém na cidade sabia quem era João das Neves. Era falar voz de pum que odos apontavam o escritório do Dr.

Depois que a Joana foi embora, isso já tem tempo, mas demora para acontecer- diziam na cidade que o mal dele estava nos feijões que o pai plantava, Graúdos, saborosos, e que Joãozinho se fartava de comer.



sábado, 21 de março de 2009

pois é, não é mesmo? IV



espinhela caída



Gritaram por dona Gesy do meio da rua mesmo. Mania de pobre, resmungava Renida. Ela secou as mãos na roupa e veio ver. Entra pra dentro, compadre, tem café no bule. 
Tô com precisão de falar com a Joana. Ela não tá na cadeira dela. Não demora , compadre. Foi rezar espinhela caída na menina do Chico dos Bazerros. Tá magrinha que dá dó. Veve de catarro. Tanto que o pulmão tá fraco. Joana é tiro e queda, viu a menina, que nenhum médico dá remédio que preste prela e falou que tá com isto e aquilo.
Sabe como é a Joana, né compadre Lico? Uma esperteza de dar gosto e que coração, compadre. Come uns biscoitinhos, fiz ontem na lenha. Tô com a mão que uma chega só. Oia! é o bambú, compadre, lasca a  gente toda nesta vida de cesto. Só ontem fiz mais de cinco, dos menor. Como vai a comadre e a criançada? 
Ela demora?
Nada. Foi num pé e vorta noutro. Qual o problema que o tirou do trabalho com as vacas, compadre? Nada de grave, mas o João, o menor, tá soltando uns fedorentos que preocupa a gente. Vai ver anda comendo bobage, nada de grave, mas o pior é que não controla.
Ó só, como ela vem, anda tão depressa que levanta poeira. 

E lá longe vinha Joana. Passinhos curtos, magra como passarinho, boa para pular de galho em galho.  

A menina já tá com a perna do mesmo tamanho da outra, benza deus, avisou de longe a Joana, o suor escorria vermelho do rosto e o sorriso na cara mostrava os dentes de quem masca fumo. Quando vi que uma táva maior do que a outra matei a charada, espinhela caída. Muita reza, pendurei ela na porta, mandei fazer uns xaropes de erva forte.

A Fulosina, mãe da garota, nem se deu conta que o ossinho mole que vem do coração tava bem na vista da gente. Nem é pra menos, eles fazem a Suelen carregar cada peso que deus me livre! Tomei a medida dela e rezei para curar primeiro o vento caído.

É isso seu Lico, se nas crianças aparecer dor na perna, nas costas olha pra boca do estômago delas, bem aqui, ó. Se um ossinho parecido com pá tiver a mostra não dá outra: é espinhela caída. Pra ter certeza, antes de me chamar, mede com um barbante o cumprimento do dedo do meio até o cotovelo e despois vê se a medida combina com a cintura. Se não, não tem outra coisa, pode me chamar que rezo. Mas cuidado que dá até mais em adulto! A comadre , tendo fé, pode rezar também, até ensino. Repete comigo, compadre, e você também, Gesy. Estava São Pedro deitado na sua capela com espinhela caída. Nosso Senhor passou girando seu mundo dele, encontrou São Pedro e perguntou: - Que tem Pedro? - Espinhela caída, Senhor. - Com que eu benzo, Pedro? - Água da fonte, raminho do monte. - Isso mesmo, Pedro, com isso eu curo. A minha caridade é vossa. Aqui estão as três pessoas da Santíssima Trindade. Aqui está a caridade e a virtude, este filho da Virgem Maria, fulano, há de ir melhorando de hora em hora, de minuto em minuto, de dia em dia.
Aí é só pegar três galhos de fedegoso, fazer sinal da cruz com eles no doente e proibir de comer comida pesada. Eu ainda faço uns xaropes de mato. Mas pode dispensar.
Tem outra reza menos comprida que é esta:  tá no mundo sem parar/ levantando a sua espinhela/ as suas arcas/ Põe tudo em seu lugar/ sua espinhela/ suas arcas/ a seus ventos./ É melhor guardar as duas. Mas o que ventos o trazem , compadre.

Seu Amarildo, de botas novas, vinha no cavalo do Pedrinho e deu bons dias. O sol tá pinicando a pele. Tá de matá, pois é, não é mesmo? Botou o chapéu de volta na cabeça e seguiu caminho desejando a paz de deus para os presentes.
Seu Lico secou o suor do rosto e contou para dona Joana que o Joãzinho táva danado de soltar uns puns fedorentos. Deus nos livre, falou e se benzeu.
Dona Joana pediu pra ver o menino que assim sem sentir o cheiro das coisas ficava difícil de dizer o que era. Seu Lico coçou a cabeça. Posso trazer ele hoje pra senhora cheirar? Esteja à gosto, disse ela, o senhor há de entender que sem ver a compridez  e sentir o cheiro fica difícil de tratar. Se o pum for curto e uma coisa, se longo é outra, se gemer, aí demanda mais cuidado e o fedor precisa ser sentido. Pode trazer o menino hoje, seu Lico. Logo , logo ele melhora. 
Seu Lico disse bons dias, pediu desculpas pelo trabalho que dava, devolveu a xícara do café que tomara e deixou todos com deus. 
Foi pela estrada, naquele sol de tinir, pegar o filho.