sexta-feira, 27 de março de 2009

pois é, não é mesmo, VII

a história de maria


De volta ao século XX, Carlinhos, quando completou 18 anos, resolveu perguntar ao pai sobre àquilo que tanto preocupava sua juventude.
Por que lá, onde houvera o jatobá, árvore sozinha no pasto devorada pelo bichos e ruira, porque em toda àquela região sempre aparecia, da noite para o dia, um buraco grande? No dia seguinte aparecia outro e mais outro e mais outro. Depois ficava um tempo sem aparecer buracos. Depois lá vinham eles de novo, como se surgissem da terra, como se a terra cedesse naquele lugar. Será que havia algum túnel lá por baixo e ,de vez em quando, a terra desmoronava? Vai brincar, menino, não venha com histórias de buracos que não existem! Existem sim, pai. É só o senhor vir comigo que vai ver! Levanta dessa cadeira e vamos ver! Não vá mais para aqueles lados que você não vê buraco algum. Isto é uma ordem! Mas pai!... Nada de mais nem menos mais. É uma ordem.

Maria, moça bonita, já com dezessete anos, de prendas e formosura comentadas por todos os rincões d’el rey, conheceu naquela ocasião, no empório do pai, um moço recadeiro, sem importância, que vivia de avisar o patrão de partidas de tesouros.
O moço, o Jequiá, aparecia e desaparecia assim, sem mais nem menos, mas ela via que ele olhava para ela enquanto estivesse por lá, esperando o pai.
O coração de Maria estralejou nas veias. Não tinha ninguém para lhe explicar o que era àquela doença de batedeira do coração. Mas no fundo dela ela sabia. Era ver o moço e o coração desesperava por aí. Era não ver e desesperava pior.
Antonio Ramon, que estava viúvo há bastante tempo, mas, como bem dizia, não estava morto, reparou nos rubores e nas vergonhas de Maria. E ficou prestando atenção. Até descobrir que sua filha estava entusiasmada pelo novo empregado.
Nunca que sua filha, agora moça de dote, bem que virgem não era mais, mas o dinheiro, como dizia, cobria qualquer coisa, nunca que sua filha ia casar com serviçal. Sonhava senhores fidalgos para enriquecer com um nome digno e famoso , de respeito, suas posses.
Despediu Jequiá. Correu com ele vida afora. Ameaçou!
Maria entristeceu. Desta vez, não estava de acordo com o pai. O amor já muito andara entre os dois, tinha engordado, estava prenhe de vontades suspiradas. E, todas as tardes, Jequiá vinha ciscar por perto do empório para ver Maria.
Antonio Ramon não conversou. Matou Jequiá e serviu-o aos porcos.
Não tendo mais seu amor por volta, Maria perdeu o viço, a beleza. Uma raiva comprida, fininha, furava ela fazendo o sangue vazar por todos os buracos de dentro no corpo, nos rincões mais escondidos, nas covas fundas do fígado. Procurou no chiqueiro e achou restos de ossos. Sabia que eram de Jequiá. Pegou um pedaço e guardou junto ao coração, encostado no seio, por dentro da roupa.
Os olhos queriam matar o pai, mas velados cobriam-se de medo e olhavam para o chão. Ficou com o corpo mais osso do que carne, encurvou a espinha e enfeiou.
A beleza do Rio da Glória, tão cantada pelos caminhos, murchou devagarinho. Mas, secamente, murchou.
A nova danou a correr estrada, varar curral, entrar na mina mais funda, escavar o chão, ressoar nas matas, roncar no tambor dos pretos e ribombar contra a Serra da Mantiqueira. Maria estava morrendo de dar dó!
E quem mais queria se servir de Maria? Ninguém. De vez em quando um, responsável pelo comboio, presenteava ela a um negro. Todos iam ainda para ver Maria definhando, sumindo, encolhendo, como alguma coisa que já tinha sido colhida.
E a fama do pouso do Rio da Glória foi mudando.
Corria a história de um lugar visitado pelo cujo que, vez em quando, sumia com uma tropa inteira, sem deixar vestígio de nada. Nem um osso para contar a história! E,ainda por cima, o mesmo cujo estava levando a vida da filha do patrão. Moça tão prendada, tão bonita como Maria, nunca que ninguém tinha visto. E virou uma morta viva!

No século XX, Carlinhos, aos 18 anos, começou a perturbar o pai para saber a origem dos buracos. A terra é da gente, pai! , dizia. Ninguém pode ficar cavando assim!
Você se lembra daquele um pé de jatobá que ficava no meio do pasto? Bem, já que você insiste, te conto. É fato vérico! Pois não é que um nosso antepassado alugou um pedaço daquele caminho perto do rio para um velhaco de nome Antonio Ramon, português recém-chegado, sem eira nem beira... Pois é. Por lá ele constuiu um empório. Bem na beira daquele caminho de passagem dos tropeiros. Eles chegavam de todas as partes do estado, carregados de ouro e pedras preciosas.
Que ninguém nos escuite. Mas dizem que ele matava com as próprias mãos os ditos cujos, os que levavam os tesouros, enterrava os corpos na areia do rio, e ficava com a fortuna.
A dinheirama ele guardava dentro de uns potes de barro, contam que cabia um homem em pé dentro deles, e metia em baixo do pé de jatobá. Em cima dos potes, ele armou um lajedo de pedra e, cobriu tudo com terra e folhas pra despistar. E isso meu filho, é fato vérico! É o que diz a história. Mas que por sua boca ninguém venha a saber o nome do gajo!
Diz a história que deste Antonio Ramon, dono do posto, é que veio a família do Comendador Ramon, que hoje é nome daquele rua que você sabe! E você sabe mesmo como é o povo dos Ramon! Pensam que têm o rei na barriga até hoje!
O velho Ramon fez a fortuna da família assim, como contam, mas andam como se fossem os reis de Portugal, mesmo depois que o dinheiro se foi.
A mulher do tal Antonio morreu de parto e deixou uma filha, e dizem que ele cuidou muito bem dela. Pelo menos isso! Mas a filha morreu também, muito nova.
Ele casou de segundas núpcias com uma da terra. Acabou com o posto, vendeu pra outro, e comprou terras e mais terras, onde hoje é a cidade.
Ele planejou tudo direitinho, e deve de ter influenciado os homens que vieram de fora para construir isto tudo que você vê aqui.
-Ninguém veio fazer a cidade, pai!
-Vieram sim. Que eu vi!. Há quase cem anos atrás.
-Pai, vamos cavar estas terras e achar nós o tesouro dos Ramon!.
-Eu já cavei muito. Tô derreado. Te dou um conselho: junta uns
trabalhadores de confiança e cava com eles.
-Eu lembro do pé de jatobá, mas não tenho mais a mínima idéia de onde ele estava plantado. Sei que é pros lados daquelas terrras que o senhor fala em vender.
-Tem um velho que sabe exatinho a direção dele. É seu Jonga, lá do Bosque.
-Mas seu Jonga, pai? logo ele?
Fui atrás de seu Jonga que me disse isso vai sair muito caro.
Seu Jonga é um feiticeiro dos bão! Vive até hoje, com mais de cem anos. Mas fala o que a gente não entende. Deu câncer lá nas cordas vocais dele, operou e ficou com a voz assim.
Ele disse que era para eu tratar dez homens de minha confiança, para cavarmos o buraco. O lugar exato ele dizia onde, na hora certa, e quando achasse a coisa ele resolvia tudo.
Reuni todos os homens e combinei: cinqüenta por cento do achado ficava com a família dos mortos. Os outros cinqüenta a gente dividia entre nós.
Os homens levaram mais de um mês cavando no lugar onde seu Jonga apontou. Eu hoje não lembro mais onde foi. Ele mediu no passo, para lá e para cá, e mandou cavar em roda.
Chovia, a gente parava. E como chovia! A gente armou tenda em volta do lugar que seu Jonga marcou, e ficamos de guarda. Mais de mês! Mamãe era uma que vinha muitas vezes trazer comida e pinga da boa. No mais era a água do Rio da Glória, que o governo já tinha represado para levar para a cidade, que a gente bebia e usava no banho.
A chuva não parava! Mas a gente não desistia. Tava perto da enchente das goiabas, quando ia parar de chover de vez. Durante a enchente o rio ocupava toda a várzea, exatamente onde estava o buraco! Por isso a gente tinha de ir mais depressa, indo contra as águas.
As enxadas, enxadões, chibancas, ficavam pesadas da lama que grudava nelas. A gente continuava.
Até que uma noite seu Jonga reuniu nós e falou, é amanhã, viu moçada? Amanhã vossemeces ficam ricos!
Dia seguinte. No final da tarde, sem uma nuvem no céu, sem um pingo de chuva, as enxadas começaram a bater na pedra. Era o tal lajedo. Apertamos mais a cavação e logo a pedra tava toda de fora. Seu Jonga mandou todo mundo se afastar. Foi pra cima da pedra, desenhou lá seus desenhos, botou o punhal no meio deles e falou com uma voz estranha, que não era igual a dele. Tem um porém, dizia, tem um porém. O mardito Antonio Ramon, matou a filha e botou ela pra tomar conta do tesouro. Ela tá falando comigo. Diz que daqui ninguém nada leva! A não ser por troca. O Carlinhos não pode, tá com mais de dezoito anos. Só pode quem tem, dezessete, que era a idade da finada. Com menos também pode! Então vossemeces decidem. Quem vai ficar aqui no lugar da finada. Alguém tem que dar seu sangue!
Só eu tinha dezoito anos. Seu Jonga nem contar, era muito velho. Dos outros dez tinha alguns com dezessete, outros com menos. Todos podiam. Só que era de escolha. E ninguém ali tava querendo morrer!
De repente começou a soprar um vento, vindo de tudo que era lado, e na verdade, de lado nenhum. Botou a gente cego da areia do rio, ameaçava fazer a gente voar!
Saíram todos correndo. Eu fui por último, era o mais velho e o chefe de todos. Seu Jonga, coitado, esse nem contar! Quando cheguei naquele mata-burro, que você atravessa todo dia, quando entra e sai do condomínio, estava encharcado. E nem uma gota de água tinha caído do céu. Parei no mata-burro para respirar. Nem sinal dos outroa ou do vento, que tinha passado. Duzentos metros depois, já em casa, minha roupa tava sequinha.
Contei o acontecido pro meu pai. Ele confirmou que diziam que o Antonio Ramon tinha matado a filha e botado ela pra tomar conta do tesouro. Mais tarde, nas minhas pesquisa, confirmei tudo. Vendo que a filha ia morrer mesmo, o português levou Maria para a beira do buraco. Levantou o lajedo, deu uma porretada na cabeça dela e falou: agora desgraçada toma conta do que é do seu pai, em vez de querer dividir com quem tem menos.
Seu Jonga errou num ponto. Só consegue levar o tesouro quem trocar Maria por Maria. Tem que matar lá no lugar uma Maria de 17 anos e virgem, pra purificar os pecados da outra.
No dia seguinte voltamos no lugar para ver o buraco. Tinha sumido tudo. Não tinha a menor marca de buraco no chão. Seu Jonga avisou pra ninguém cavar mais porque estava tudo interditado. No mesmo dia começou a enchente das goiabas.


Eu ainda vejo, como se um dia tivesse visto, os tropeiros comboiando a tropa debaixo de chuva, as abas dos chapéus desabados pela água, os impermeáveis pretos brilhando e as mulas socavando as margens do rio, com dificuldade em levantar as patas afundadas na areia encharcada, e os homens curvados sobre os animais, protegendo o rosto da fustigação do vento. Vejo lá longe os morros cobertos por nuvens de neblina que deixavam ver um pedaço ou outro da mata. Escuto o aboiar do patrão da tropa forçando a marcha . Eu vejo tudo isso como se um dia tivesse visto mesmo. Vai ver já fui um tropeiro e reencarnei, como diz o Carlinhos. Ou então vi essas coisas em filmes sobre o faroeste norte americano! Devia ser tudo igual...

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