Numa noite sem lua, dizem que o tempo estava nublado, mas que a lua era cheia, e a segunda lua cheia de um mesmo mês, o que é muito perigoso! Dona Gesy, que tinha terminado de fazer um cesto, aproveitando a última claridade do dia, foi guardar os bambus em baixo da coberta de lona preta. Aí ela viu Pedrinho puxando o cavalo dele, inteiro, pelo cabresto, subir a estrada da fazenda, indo para o cafezal. Diz ela que pensou o que este homem de Deus ia fazer naquelas bandas, quando já anoitecia. A égua da Mariangela que estava pastando na beira do rio empinou as orelhas quando viu o cavalo passar. Mas ele nem ligou o que é de admirar. Aquele cavalo é siderado naquela égua. Dona Gesy diz que não prestou mais atenção e foi guardar a palha.
Escureceu de vez. Ela pegou uns paus de lenha pra botar no fogo e esquentar a água do banho. Aí viu Pedrinho voltar montado no cavalo. Ele falou boa noite dona Gesy. Acabo de encontrar um veadinho perto do cafezal! Uma beleza que ele é! Só mesmo vendo para crer!
Dona Gesy deu boa noite e entrou pra dentro. Que veadinho que nada, falou pro marido. Aqui só tem lobo guará e lontra que come as galinhas! Era mais o cujo, isto sim. Ele foi lá prestar contas a ele.
O marido de dona Gesy fez o sinal da cruz e saiu pro terreiro. Aí deu de cara com Renida olhando para eles com o binóculo. O cujo tá ali, gritou pra mulher e foi na vendinha tomar um porre. E não voltou para casa esta noite, como tantas, pensou dona Gesy.
No dia seguinte ele foi encontrado perto do rio, dormindo ainda, todo molhado de sereno, com uma cruz de sangue desenhada na testa. Ele nunca soube explicar como aquilo tinha acontecido. Que bebera muito pouco. Só umas três cervejas com seu Nico e uma ou duas branquinhas. Que isto não era bebida de derrubar homem!
Dona Gesy sabia que tinham sido ao anjos que o protegeram do cujo que estava solto naquela noite por ordem do Pedrinho. Não foram à toa tantas ave-marias e padre- nossos que rezara a noite toda.
Todo mês de outubro começam as chuvas. Tão certo quanto. Alguns dizem que é em novembro, que elas começam, no dia de finados. Outros dizem que o certo é antes do natal. Mas ninguém sabe com precisão quando elas terminam.
Exceto Miranda que jura que elas acabam depois do dia de Reis. Aí vem a estiagem que só vai terminar em finados.
Na certa ela começa em outubro, se El Niño ou
Chove todos os dias. Às vezes dias seguidos, sem descanso.
A terra que é de barro vermelho, quase roxo, gruda nas solas dos sapatos. A uma camada se sobrepõe outra e o sapato ganha um solado grosso, que pesa mais a cada passo dado. Os pés parecem com os ferros de passar roupa antigos esquentados pelo carvão incendiados dentro deles e que por descuido ficavam com a face rubra do fogo.
Quando há algum sol é o tempo de olhar para o céu, dizer que bom: um pouco de azul! E só. Logo as nuvens amontoam e recomeça a chover. Nesta época só é possível saber da lua pela folhinha e jornais. Mas às vezes, depois de uma pancada de chuva, surge um céu totalmente estrelado. E pode ser reiniciado o reconhecimento das constelações. Rapidamente. Logo as nuvens se amontoam e recomeça a chover.
Os tropeiros evitavam passar pelo sul de Minas nesta época chuvosa. As opções, no entanto, eram poucas. Vindos de Campanha, a capital das Minas Gerais, uma vez capital do Brasil, para levar o quinto de ouro da coroa, com os burros e cavalos carregados, poucos caminhos haviam sido abertos que pudessem percorrer. Pelo sul do estado, eles chegavam à Juiz de Fora, desciam a serra de Petrópolis e logo estavam no porto de Estrela, no município de Magé, no Estado do Rio de Janeiro, onde aportavam navios de grande calado que navegavam pelo Rio Parayba do Su.Chegavam de Portugal trazendo móveis, tecidos, alimentos e mais pessoas para a corte do Brasil e levando o ouro, as madeiras e as pedras preciosas para Portugal.
Rugendas, em suas caminhadas pelo Brasil, passou pelo Porto de Estrela ,onde ficou instalado o tempo preciso para desenhar à bico de pena o movimento dos navios, tropeiros, dos escravos com suas cargas, os afluentes do rio e o próprio rio que hoje mal comporta que um pequeno barco a remo, de pescadores, trafegue por suas águas.
Rugendas desenhou os burros derreados pelo peso de suas cargas, o cansaço dos tropeiros, e só não desenhou a sujeira vermelha do barro de suas roupas porque ele trabalhava com tinta preta sobre o fundo creme do papel vergéè.
Mas passavam. Desciam de Campanha, passavam pelas matas de Jatobá e Jacarandá mineiro, costeando os rios e pousavam nos postos de abastecimento .
Um destes postos, do português Antonio Ramon, ficava nas terras dos herdeiros de Fernão Dias Paes Leme,
Ora, acontece que o pai do Carlinhos é herdeiro do Paes Leme. E, por isto, Carlinhos também o é.
No local que está sendo tratorado para o Eduardo construir uma casa estava plantado o último jatobá que sobrou da exploração de madeira da mata nativa.
Em l942 nasceu Carlinhos. Anos depois, já com seus oito anos, conta ele, mais de dez homens não conseguiam abraçar a árvore.
Nesta época o empório não existia mais. Nem mesmo a sombra do empório. Só restara um pasto imenso, o rio da Glória correndo lá no fundo, e o pé de Jatobá. O Antonio Ramon, dono do empório, deu origem à família que hoje é nome de rua na cidade. A Comendador Ramon.
Neste empório, em mil oitocentos e pouco, pouco antes da libertação dos escravos, Antonio Ramon trabalhava ajudado por sua única filha Maria.
A mulher, mal chegada de Portugal não suportara os humores da terra e morreu quando a menina nasceu. Antonio contratou uma ama de leite, escrava da terra que ele alugara para montar seu empório e que pertencia aos herdeiros de Fernão Dias Paes Leme.
Conta Carlinhos que Fernão ia acumulando as pedras que encontrava, crendo que eram esmeraldas. E se esfalfou nesta lida, por mando da Coroa. Encontrar o máximo de esmeraldas, era a missão. Quando o caçador de pedras acreditou que ao prestar contas de seu tesouro no Reino receberia extensas sesmarias, partiu para a corte. Esvaziou seu embornal no Paço e pasmou, ao ser informado pelo conferente, que levava apenas turmalinas, sem qualquer valor comercial.As pedras brilhavam de deboche.
Desesperado, retornou aos rios, com seus escravos, para achar as pedras verdadeiras. Desta vez seguiu um caminho diferente e foi para Goiás. Lá, conseguiu seu intento. Recebeu algumas terras ao sul das Minas Gerais. Não a província inteira, como desejava.
Por pura teimosia, rancor, retornou aos rios de minas. Percorreu todos. Na época das chuvas era costume colocar dentro dos rios um grande pilão, parecido com os de socar café, com a boca mais larga e, dentro deles, um azougue que atraía todos os metais para dentro do artefato. Quando passavam as chuvas e os leitos dos rios retornavam ao seu normal os faiscadores retiravam seus pilões e iam batear o que estava dentro deles. Era tanto ouro naquela época que sustentou toda a Europa.
E, ainda hoje quem vai para Itajubá, por Conceição das Pedras, antiga Conceição dos Ouros vê garimpeiro que tira por dia mais de cem gramas de ouro, bateando nos rios.
voz de pum
Joãozinho era um menino sem palavras. Ele não dizia nada. A palavra ainda não nascera para ele. Nem para dizer, nem para ouvir. Então seus olhos ficavam parados em algum ponto fixo, ou rolavam nas órbitas vigiando a paisagem. Diziam os médicos que era só ele querer que falava e que a surdez não existia. Fizeram de um tudo para ele falar. Depois esqueceram. Havia muita gente para tratar e que podia pagar pelo tratamento. Joãozinho vinha pelo SUS. Havia que esperar.
Quando dona Joana falava, ele fincava os olhos nela como se entendesse tudo e gostasse do que ouvia. Alguns diziam que ele não falava por respeito à fala. Dona Joana dizia que ele admirava tanto o som que tinha complexo de inferioridade. Não se achava digno de fazer barulho. Por isto, a cada pum barulhento, ele escondia o rosto e chorava, ou melhor, as lágrimas escorriam dos olhos que ele arregalava com horror.
Vem cá menino, disse dona Joana. Ele foi. Parou de perna juntinha, braços colados no corpo, virou a cabeça para cima e abriu a boca. Foi o suficiente para sair um pum. Prolongado, gemido, fedorento. Ele gemia de soçobrar, virava curva, e morria devagar. Um pum que morria de suspiro.
Joãozinho estava com a cara toda molhada de lágrimas. Vermelha de vergonha. Dona Joana nem perdeu tempo. Deu logo o veredicto. Está na hora deste menino falar. Ele quer dizer alguma coisa e como não sai a voz por cima, pela boca, faz caminho inverso, sai por baixo. E a voz dele está triste, desesperada, repara como soluça. Todos ficaram aguardando o próximo pum. Demorou mas veio, gemido, solavancado, fedido.
Você precisa falar, meu filho. Falou dona Joana com a mão no queixo dele. A cara molhada, nariz cheio de ranho, olhava para o chão e com o pé descalço rabiscava ondinhas na poeira vermelha da terra.
Fale palavras simples, meu filho. Como pão. Leite. Pai. Mãe. O menino sacudiu a cabeça. Peidou um som cavo e fedorento. Assim não dá menino, falou dona Joana com a barra da saia tampando o nariz. Fala ba, pediu depois que o fedor diminuiu. Fala te, insistiu e explicou: você vê isto aqui, menino, sacudiu as próprias orelhas? Cada orelha ouve um som.
-Ele está discriminando os sons. Berrou Renida da varanda da casa dela.
_ O que você falou?
_ Quem não fala discrimina a palavra. Se acha melhor do que quem fala. É o que este pestinha faz! Ele se põe melhor do que um bispo. Crente que nem ele só.
O menino chorava cada vez mais.
Dona Gesy implorou: fala para tampar a boca dela, Joãozinho, fala! Você prendeu a palavra dentro de você e isto é egoísmo. Olha em volta de você e me conta como você chama cada coisa que sem ter nome, sem ser chamada por uma pessoa que seja não existe. Você não quer ter amizade com o rio, o cavalo, as nuvens, olha o sol como pinica na pele! Eles não existem
O pai passou a mão na cabeça do filho e
Olhou preocupado para dona Joana.
A senhora ta dizendo pra criança que ela é assassina. Ela é seu Lico. O rio da glória existe se o senhor falar o nome dele. Se não, não.
O pai pegou o filho pela mão e foi arrastando ele pela estrada. Cada pum mais alto do que o outro, e o fedor parecia mais forte. Mas o pai o protegia do mal que dona Joana rogava para ele.
Não dou a virada da curva para o menino falar, disse ela para dona Gesy.
A curva foi chegando. Eles passaram por ela e sumiram da vista das duas.
Seu Amarildo passou num trote pequeno no cavalo do Pedrinho. Deu boas tardes e falou que o sol tava pinicando a pele. Ofereceu umas bananas para dona Gesy , botou o chapéu na cabeça e deixou todo mundo com deus.
Nisto o menino voltou correndo, passou a curva, tropeçou e , caído no chão gritou, vai pra puta que pariu dona Joana. A Senhora pensa que me engana? Não matei nada não! Olha o rio vivo, olha o sol sua malvada.
Dona Joana riu para dona Gesy que convidou, entra pra dentro mulher, vem tomar uma água gelada. Que susto o Joãozinho levou. Bem feito para ele. E pensar que deixou todo mundo desesperado. Tomara que esteja curado do pum.
Foi a partir deste dia que Joãozinho ficou conhecido como voz de pum. Ele estudou, se fez doutor advogado, mas ninguém na cidade sabia quem era João das Neves. Era falar voz de pum que odos apontavam o escritório do Dr.
Depois que a Joana foi embora, isso já tem tempo, mas demora para acontecer- diziam na cidade que o mal dele estava nos feijões que o pai plantava, Graúdos, saborosos, e que Joãozinho se fartava de comer.
turmalinas
Enquanto isto Fernão Dias procurava as pedras nos rios, nas rochas, nas margens arenosas, ou cheias de lama e, impaciente, escavava as terras com os dedos, procurando os veios verdes das esmeraldas.
As unhas apodreceram e caíram, os dedos gangrenavam e Fernão se arrastando pelo curso dos rios enlouquecia, supondo ver em cada pedra, esmeralda. Morreu desesperado.
A barba longa, os cabelos desgrenhados, mal alimentado, como numa fotografia. Na margem de um dos rios que conhecia de cor, de tanto percorrê-los a todos. Morreu de pura exaustão. E seus herdeiros foram recebendo as terras que dividiam entre si e entre a grande prole que cada um deles havia gerado.
Até Antonio Ramon alugar um pedaço do pasto, que ficava no caminho dos tropeiros, para montar um empório, a família só vivia da criação de gado , de porcos e de algum café que restou dos pés que morriam tomados por praga, depois que os escravos foram libertados e não havia quem cuidasse deles.
Ramon recebia os tropeiros, alojava seus animais, dava-lhes comida, camas macias para dormir, vendia-lhes com o preço mais barato que havia, desde Campanha até Estrela, todo o produto de que precisavam até chegar ao próximo empório, e ainda brindava o capataz da tropa com os favores de Maria, que deixava a adolescência com corpo de mulher adulta.
A fama do empório do Rio da Glória cresceu rápida. Maria era cantada em prosa e verso pelo caminho dos tropeiros. Que avisassem com antecedência do próximo retorno para que Maria estivesse sempre disponível.
Depois da abolição da escravatura as tropas começaram a diminuir de tamanho. Os animais vinham em igual quantidade, carregados de ouro e pedras preciosas, mas os homens que os conduziam, contando com o chefe, eram em três ou até dois. Os lucros do empório diminuíram. Eram menos bocas a alimentar. Menos suprimentos para vender.
Antonio começou então a execução de um plano que acalentava há muitos anos. Os tropeiros apeavam de seus cavalos, matavam a sede e a fome e, enquanto o patrão da tropa se servia dos favores de Maria todos podiam beber à vontade, da boa pinga feita pelo dono do empório.
Então foram mortos os primeiros. Quando estavam todos ferrados no sono da bebida, o português acertava uma única e eficiente paulada na cabeça deles.
Havia um mangueiral para criação de porcos perto do Rio da Gloria, de modo que as fezes dos animais fossem direto para o rio, dando menos trabalho para limpar os chiqueiros.
O dono do empório, com um cutelo afiado cortava em pedaços os corpos dos que ia matando e os servia aos porcos, que devoravam as carnes e os ossos com voracidade, de modo a nada sobrar.
Os cavalos da tropa, ele os prendia num curral e, mais tarde, negociava alegando que podia vender barato porque barato os comprara dos tropeiros. Animais cansados, magros, estropiados, que ele recuperava e vendia para aumentar a fortuna. Com o melhor, o que na realidade pretendia, o ouro, as pedras preciosas, ele fazia embrulhos e os enterrava em torno da copa do pé de jatobá.
Assim o tempo foi passando e Antonio Ramon enriquecendo.
A coroa vendo que as tropas vindas com o quinto escasseavam, aumentou a cobrança do imposto e fez a derrama, enviando ouvidores-mór para acompanhar de perto o problema e encontrar soluções.
Uma jovem culta, o que era impensado na época, pois as famílias preparavam suas filhas para as prendas do matrimônio, iniciou a se preocupar e comentar com os mais próximos o absurdo que era Portugal cobrar o quinto de cada família produtiva da terra. Ela era a Bárbara Heliodora, a Barbra Heliodora!
E era assim que Carlinhos Contava esta história. De uma talagada só. Do mesmo modo que a repito.
A Corte Portuguesa desembarcou na cidade do Rio de Janeiro em março de 1808.
Mas, diz Thalita Casadei ,que a Vila de Campanha da Princesa já sabia que isto iria acontecer desde fevereiro . E os maiores da vila, presto, enviaram documento à Rainha D. Maria I, à sua Real Família e cortesões em que dizia estarem prontos a “prostar-se aos pés de Vossa Alteza Real e render a sua profunda obediência e Vassalagem, oferecendo todos com muito gosto prontas as suas vidas e fortunas para tudo quanto for do Real Agrado e Serviço de Vossa Alteza Real. Vila da Campanha Princesa, 7 de fevereiro de
Anteriormente foi feita e aceita a doação da Terça parte das rendas da Vila para a Princesa Dona Carlota Joaquina. Foram enviados também animais os mais variados para transporte, trabalho e alimentação da Corte.
E todas as tropas passavam pelo pouso da Quaresma , onde houve despesas com milho, algodão para embornais, farinha e arroz; pelo pouso dos Criminosos onde se gastou com milho, farinha e fumo para curar bicheiras. Seguiam esse caminho, chegando a terras paulistanas e daí rumavam para o Estado do Rio.
Como conta Carlinhos eles passavam também pelo Pouso dos Penha onde os gastos,por causa de Maria, nunca foram anotados. Vamos ficar com a versão dele, que não é historiador, mas conhece em profundidade todas as histórias daqui.
a história de maria
De volta ao século XX, Carlinhos, quando completou 18 anos, resolveu perguntar ao pai sobre àquilo que tanto preocupava sua juventude.
Por que lá, onde houvera o jatobá, árvore sozinha no pasto devorada pelo bichos e ruira, porque em toda àquela região sempre aparecia, da noite para o dia, um buraco grande? No dia seguinte aparecia outro e mais outro e mais outro. Depois ficava um tempo sem aparecer buracos. Depois lá vinham eles de novo, como se surgissem da terra, como se a terra cedesse naquele lugar. Será que havia algum túnel lá por baixo e ,de vez em quando, a terra desmoronava? Vai brincar, menino, não venha com histórias de buracos que não existem! Existem sim, pai. É só o senhor vir comigo que vai ver! Levanta dessa cadeira e vamos ver! Não vá mais para aqueles lados que você não vê buraco algum. Isto é uma ordem! Mas pai!... Nada de mais nem menos mais. É uma ordem.
Maria, moça bonita, já com dezessete anos, de prendas e formosura comentadas por todos os rincões d’el rey, conheceu naquela ocasião, no empório do pai, um moço recadeiro, sem importância, que vivia de avisar o patrão de partidas de tesouros.
O moço, o Jequiá, aparecia e desaparecia assim, sem mais nem menos, mas ela via que ele olhava para ela enquanto estivesse por lá, esperando o pai.
O coração de Maria estralejou nas veias. Não tinha ninguém para lhe explicar o que era àquela doença de batedeira do coração. Mas no fundo dela ela sabia. Era ver o moço e o coração desesperava por aí. Era não ver e desesperava pior.
Antonio Ramon, que estava viúvo há bastante tempo, mas, como bem dizia, não estava morto, reparou nos rubores e nas vergonhas de Maria. E ficou prestando atenção. Até descobrir que sua filha estava entusiasmada pelo novo empregado.
Nunca que sua filha, agora moça de dote, bem que virgem não era mais, mas o dinheiro, como dizia, cobria qualquer coisa, nunca que sua filha ia casar com serviçal. Sonhava senhores fidalgos para enriquecer com um nome digno e famoso , de respeito, suas posses.
Despediu Jequiá. Correu com ele vida afora. Ameaçou!
Maria entristeceu. Desta vez, não estava de acordo com o pai. O amor já muito andara entre os dois, tinha engordado, estava prenhe de vontades suspiradas. E, todas as tardes, Jequiá vinha ciscar por perto do empório para ver Maria.
Antonio Ramon não conversou. Matou Jequiá e serviu-o aos porcos.
Não tendo mais seu amor por volta, Maria perdeu o viço, a beleza. Uma raiva comprida, fininha, furava ela fazendo o sangue vazar por todos os buracos de dentro no corpo, nos rincões mais escondidos, nas covas fundas do fígado. Procurou no chiqueiro e achou restos de ossos. Sabia que eram de Jequiá. Pegou um pedaço e guardou junto ao coração, encostado no seio, por dentro da roupa.
Os olhos queriam matar o pai, mas velados cobriam-se de medo e olhavam para o chão. Ficou com o corpo mais osso do que carne, encurvou a espinha e enfeiou.
A beleza do Rio da Glória, tão cantada pelos caminhos, murchou devagarinho. Mas, secamente, murchou.
A nova danou a correr estrada, varar curral, entrar na mina mais funda, escavar o chão, ressoar nas matas, roncar no tambor dos pretos e ribombar contra a Serra da Mantiqueira. Maria estava morrendo de dar dó!
E quem mais queria se servir de Maria? Ninguém. De vez em quando um, responsável pelo comboio, presenteava ela a um negro. Todos iam ainda para ver Maria definhando, sumindo, encolhendo, como alguma coisa que já tinha sido colhida.
E a fama do pouso do Rio da Glória foi mudando.
Corria a história de um lugar visitado pelo cujo que, vez em quando, sumia com uma tropa inteira, sem deixar vestígio de nada. Nem um osso para contar a história! E,ainda por cima, o mesmo cujo estava levando a vida da filha do patrão. Moça tão prendada, tão bonita como Maria, nunca que ninguém tinha visto. E virou uma morta viva!
No século XX, Carlinhos, aos 18 anos, começou a perturbar o pai para saber a origem dos buracos. A terra é da gente, pai! , dizia. Ninguém pode ficar cavando assim!
Você se lembra daquele um pé de jatobá que ficava no meio do pasto? Bem, já que você insiste, te conto. É fato vérico! Pois não é que um nosso antepassado alugou um pedaço daquele caminho perto do rio para um velhaco de nome Antonio Ramon, português recém-chegado, sem eira nem beira... Pois é. Por lá ele constuiu um empório. Bem na beira daquele caminho de passagem dos tropeiros. Eles chegavam de todas as partes do estado, carregados de ouro e pedras preciosas.
Que ninguém nos escuite. Mas dizem que ele matava com as próprias mãos os ditos cujos, os que levavam os tesouros, enterrava os corpos na areia do rio, e ficava com a fortuna.
A dinheirama ele guardava dentro de uns potes de barro, contam que cabia um homem em pé dentro deles, e metia em baixo do pé de jatobá. Em cima dos potes, ele armou um lajedo de pedra e, cobriu tudo com terra e folhas pra despistar. E isso meu filho, é fato vérico! É o que diz a história. Mas que por sua boca ninguém venha a saber o nome do gajo!
Diz a história que deste Antonio Ramon, dono do posto, é que veio a família do Comendador Ramon, que hoje é nome daquele rua que você sabe! E você sabe mesmo como é o povo dos Ramon! Pensam que têm o rei na barriga até hoje!
O velho Ramon fez a fortuna da família assim, como contam, mas andam como se fossem os reis de Portugal, mesmo depois que o dinheiro se foi.
A mulher do tal Antonio morreu de parto e deixou uma filha, e dizem que ele cuidou muito bem dela. Pelo menos isso! Mas a filha morreu também, muito nova.
Ele casou de segundas núpcias com uma da terra. Acabou com o posto, vendeu pra outro, e comprou terras e mais terras, onde hoje é a cidade.
Ele planejou tudo direitinho, e deve de ter influenciado os homens que vieram de fora para construir isto tudo que você vê aqui.
-Ninguém veio fazer a cidade, pai!
-Vieram sim. Que eu vi!. Há quase cem anos atrás.
-Pai, vamos cavar estas terras e achar nós o tesouro dos Ramon!.
-Eu já cavei muito. Tô derreado. Te dou um conselho: junta uns
trabalhadores de confiança e cava com eles.
-Eu lembro do pé de jatobá, mas não tenho mais a mínima idéia de onde ele estava plantado. Sei que é pros lados daquelas terrras que o senhor fala em vender.
-Tem um velho que sabe exatinho a direção dele. É seu Jonga, lá do Bosque.
-Mas seu Jonga, pai? logo ele?
Fui atrás de seu Jonga que me disse isso vai sair muito caro.
Seu Jonga é um feiticeiro dos bão! Vive até hoje, com mais de cem anos. Mas fala o que a gente não entende. Deu câncer lá nas cordas vocais dele, operou e ficou com a voz assim.
Ele disse que era para eu tratar dez homens de minha confiança, para cavarmos o buraco. O lugar exato ele dizia onde, na hora certa, e quando achasse a coisa ele resolvia tudo.
Reuni todos os homens e combinei: cinqüenta por cento do achado ficava com a família dos mortos. Os outros cinqüenta a gente dividia entre nós.
Os homens levaram mais de um mês cavando no lugar onde seu Jonga apontou. Eu hoje não lembro mais onde foi. Ele mediu no passo, para lá e para cá, e mandou cavar em roda.
Chovia, a gente parava. E como chovia! A gente armou tenda em volta do lugar que seu Jonga marcou, e ficamos de guarda. Mais de mês! Mamãe era uma que vinha muitas vezes trazer comida e pinga da boa. No mais era a água do Rio da Glória, que o governo já tinha represado para levar para a cidade, que a gente bebia e usava no banho.
A chuva não parava! Mas a gente não desistia. Tava perto da enchente das goiabas, quando ia parar de chover de vez. Durante a enchente o rio ocupava toda a várzea, exatamente onde estava o buraco! Por isso a gente tinha de ir mais depressa, indo contra as águas.
As enxadas, enxadões, chibancas, ficavam pesadas da lama que grudava nelas. A gente continuava.
Até que uma noite seu Jonga reuniu nós e falou, é amanhã, viu moçada? Amanhã vossemeces ficam ricos!
Dia seguinte. No final da tarde, sem uma nuvem no céu, sem um pingo de chuva, as enxadas começaram a bater na pedra. Era o tal lajedo. Apertamos mais a cavação e logo a pedra tava toda de fora. Seu Jonga mandou todo mundo se afastar. Foi pra cima da pedra, desenhou lá seus desenhos, botou o punhal no meio deles e falou com uma voz estranha, que não era igual a dele. Tem um porém, dizia, tem um porém. O mardito Antonio Ramon, matou a filha e botou ela pra tomar conta do tesouro. Ela tá falando comigo. Diz que daqui ninguém nada leva! A não ser por troca. O Carlinhos não pode, tá com mais de dezoito anos. Só pode quem tem, dezessete, que era a idade da finada. Com menos também pode! Então vossemeces decidem. Quem vai ficar aqui no lugar da finada. Alguém tem que dar seu sangue!
Só eu tinha dezoito anos. Seu Jonga nem contar, era muito velho. Dos outros dez tinha alguns com dezessete, outros com menos. Todos podiam. Só que era de escolha. E ninguém ali tava querendo morrer!
De repente começou a soprar um vento, vindo de tudo que era lado, e na verdade, de lado nenhum. Botou a gente cego da areia do rio, ameaçava fazer a gente voar!
Saíram todos correndo. Eu fui por último, era o mais velho e o chefe de todos. Seu Jonga, coitado, esse nem contar! Quando cheguei naquele mata-burro, que você atravessa todo dia, quando entra e sai do condomínio, estava encharcado. E nem uma gota de água tinha caído do céu. Parei no mata-burro para respirar. Nem sinal dos outroa ou do vento, que tinha passado. Duzentos metros depois, já em casa, minha roupa tava sequinha.
Contei o acontecido pro meu pai. Ele confirmou que diziam que o Antonio Ramon tinha matado a filha e botado ela pra tomar conta do tesouro. Mais tarde, nas minhas pesquisa, confirmei tudo. Vendo que a filha ia morrer mesmo, o português levou Maria para a beira do buraco. Levantou o lajedo, deu uma porretada na cabeça dela e falou: agora desgraçada toma conta do que é do seu pai, em vez de querer dividir com quem tem menos.
Seu Jonga errou num ponto. Só consegue levar o tesouro quem trocar Maria por Maria. Tem que matar lá no lugar uma Maria de 17 anos e virgem, pra purificar os pecados da outra.
No dia seguinte voltamos no lugar para ver o buraco. Tinha sumido tudo. Não tinha a menor marca de buraco no chão. Seu Jonga avisou pra ninguém cavar mais porque estava tudo interditado. No mesmo dia começou a enchente das goiabas.
Eu ainda vejo, como se um dia tivesse visto, os tropeiros comboiando a tropa debaixo de chuva, as abas dos chapéus desabados pela água, os impermeáveis pretos brilhando e as mulas socavando as margens do rio, com dificuldade em levantar as patas afundadas na areia encharcada, e os homens curvados sobre os animais, protegendo o rosto da fustigação do vento. Vejo lá longe os morros cobertos por nuvens de neblina que deixavam ver um pedaço ou outro da mata. Escuto o aboiar do patrão da tropa forçando a marcha . Eu vejo tudo isso como se um dia tivesse visto mesmo. Vai ver já fui um tropeiro e reencarnei, como diz o Carlinhos. Ou então vi essas coisas em filmes sobre o faroeste norte americano! Devia ser tudo igual...
Nenhum comentário:
Postar um comentário